Vem, doce hora da morte! (BWV-161) – Rolando de Nassau
Especial para “Hinologia Cristã”
Em 2 de agosto de 2015, dei início ao meu propósito de ouvir todas as cantatas sacras de Bach; das centenas existentes na discoteca, já ouvi 60.
A inusitada frequência com que leio obituários de amigos e celebridades levou-me a ouvir a cantata “Vem, doce hora da morte!” (no original alemão, “Komm, du süsse Todesstunde”), de Johann Sebastian Bach (1685-1750), gravada num disco elepê da década de 60, na Holanda, pelo Concerto Amsterdam, liderado por Jaap Schröder.
Na execução da obra, destacamos dois grandes solistas, Helen Watts (contralto) e Kurt Equiluz (tenor).
Na cantata BWV-161, Bach demonstra, mais uma vez, sua habilidade para analisar, mesmo o texto mais rudimentar, a respeito da sua forma e conteúdo, extrair seu significado teológico e interpretar seu núcleo espiritual, numa linguagem musical sutil e poderosa.
Em Weimar (1708-1717), a partir de 1714, Bach foi encarregado de mensalmente compor cantatas; ele escolheu textos escritos por Erdmann Neumeister (1671-1756) e Salomo Franck (1659-1725).
A música desta cantata foi apresentada em 1716, embora estivesse pronta desde 1715.
A obra destinava-se ao 16º. domingo depois da festa da Trindade, para ser executada por contralto e tenor solistas, coro e instrumentos. Em 1735, em Leipzig, recebeu uma 2ª.versão, na quel foi integrada a voz de soprano solista.
O tema era a ressurreição do filho da viúva de Naim. A ressurreição é interpretada como uma tese: eu também serei ressuscitado por Jesus, por isso não posso desejar nada melhor do que uma morte iminente.
Para Neumeister, a cantata deveria ser uma paráfrase artística do tema do sermão.
Influenciado por ele, Franck trata o tema da morte libertadora no centro da cantata (ver: Candé, Roland de. Jean Sebastién Bach. Paris: Seuil, 1984).
Franck toma como base Lucas 7: 11-17.
É uma das mais belas traduções a respeito da espera da morte, por isso ela se aproxima do “Ato Trágico”.
Na ária de abertura, destinada à contralto solista, o libretista fez alusão ao espírito do moribundo “fartar-se do mel da boca do leão” (“Da mein Geist honig speist aus de Löwens Munde”), referindo-se ao episódio de Sansão (Juízes 14:10-18); quer dizer que do leão morto saía um doce alimento.
Os 2º. e 3º. movimentos (recitativo e ária do tenor) exploram a ideia pietista e puritana da separação do mundo.
No recitativo do contralto (4º. trecho), que anuncia estar próximo o fim do moribundo (“Der Schluss ist schon gemacht”), Bach confere ao acompanhamento instrumental a descrição: o sono tranquilo, a ressurreição e o sino da morte.
Esse número 4 fornece “uma ilustração profundamente emocionante do sono e do despertar” (ver: Chailley, Jacques. Les Passions de J.S.Bach. Paris: Presses Universitaires de France: 1963; Neumann, Werner. Handbuch des Kantatem J.S.Bachs. Leipzig: 1971).
Frequentemente ouvimos na música de Bach o toque de sinos para mencionar a morte; Bach visa obter um realismo de som e ritmo (ver: Schweitzer, Albert. J.S.Bach, vol. II. New York: Dover, 1966).
No quinto movimento, o coro canta e suspira, num entusiasmo crescente, “Jesu, komm und nimm mich fort! Dieses sei mein letztes Wort!” (Jesus, vem e toma-me! Esta é a minha última palavra!) (ver: Schering, Arnold. Über kantaten J.S.Bachs. Leipzig: 1942).
Realmente, as últimas palavras da cantata evocam “a última hora”; Bach fez os violinos imitarem a batida dos relógios alemães (ver: Lemaître, Edmond, dir. Guide de la Musique Sacrée. Paris: Fayard, 1992).
No coral de encerramento, o hino “Herzlich tut mich verlangen” (Almejo do fundo do coração), atribuído a Christoph Knoll, antecipa o papel importante que teria na “Paixão de Cristo, segundo São Mateus”. Para Alfred Dürr (ver: As cantatas de Bach. Bauru, SP: EDUSC, 2014), a melodia recebe um brilho inesperado: é a luz que irradia do corpo ressuscitado.
Brasília, DF, em 08 de dezembro de 2016.
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