Uma Hinódia Nova? – Sérgio Marcus Pinto Lopes
Uma Hinódia Nova? – (I)
Pode-se propor algo novo sem se fazer crítica ao que é antigo? Eu não diria que é impossível, mas é preciso reconhecer que se trata de algo bastante difícil. Entenda-se: quando se propõe algo novo, é porque deve ser melhor do que o existente. Não faria sentido propor algo igual ou inferior. A avaliação entre as duas realidades é inevitável. Isto ficou evidente aos olhos dos contemporâneos de Jesus quando ele lhes disse: vocês ouviram o que foi dito aos antigos. Eu, porém, lhes digo… Por isso mesmo recebeu tantas reações negativas! Vale dizer, a crítica ao antigo fica clara.
Mas aí ocorre um problema quando se pretende uma proposta de renovação da hinódia. A igreja – um dos movimentos mais conservadores e tradicionalistas que existe na sociedade, como, aliás, o são as religiões em geral – se sente escandalizada: como? Os hinos que sempre temos cantado não prestam? São de baixa qualidade? A rejeição ao novo é por isso quase inevitável. Então é preciso caminhar com cuidado.
Por que as igrejas brasileiras precisam de uma nova hinódia?
Devemos ponderar antes de mais nada as letras de seus hinos.
A extensa maioria dos que existem em seus hinários repete uma poesia que precisa ser reavaliada no que tange à sua atualidade. Em um mundo praticamente urbano, as imagens destes poemas, quase todas de origem rural e dos séculos 18 e 19, nada acrescentam à experiência religiosa da juventude do século 21, hoje em dia agarrada a seus gadgets eletrônicos e vivendo uma sociedade conectada! Falar hoje em “guarda o marinheiro no violento mar” e esquecer os 7 mil aviões de passageiros que a qualquer dado instante estão no ar ao redor do planeta é algo que pouco tem a ver com a realidade que se vive! As letras dos hinos falam, em sua grande maioria, de um mundo que praticamente não existe mais ou existe apenas para poucos!
Por outro lado, a problemática social em que se debatem as nações – para não se entrar no campo da política! – está praticamente ausente, intocada, nos hinos cantados nas igrejas. Parece que os seres humanos, pecadores, praticam os seus pecados, de qualquer natureza, apenas por sua responsabilidade individual. Há uma quase total falta de percepção quanto ao fato de que as pessoas cometem seus erros e crimes condicionados por processos educativos distorcidos ou falta destes processos. Quem cresce no mal dificilmente deixa de praticar o mal. Em outras palavras, o pecado social é completamente ignorado. As estruturas – legislações, instituições, costumes sociais, oportunidades econômicas, sistemas de toda a ordem – têm uma forte influência no levar as pessoas ao mal. Mas as poesias dos hinos quase só veem as culpas individuais. Os poetas aparentemente não enxergaram a extensão disso ao longo dos séculos!
Quando os hinos falam do mal presente no mundo propõem apenas que a pessoa cristã fuja dele, pense no céu, na volta de Jesus, anseie pelo fim dos tempos ou aguarde uma fuga daqui em um futuro arrebatamento. Isto se chama escapismo! O desafio para que elas enfrentem a realidade e busquem transformá-la é quase inexistente. Parece que os poetas leram apenas – ou majoritariamente – os textos apocalípticos da escritura, ignorando todas as demais passagens. Como a situação no mundo é realmente grave, os hinos apenas reforçam a necessidade de as pessoas crentes se esconderem e não se comprometerem com a sua transformação total!
Os hinos desconhecem quase totalmente o fato de que o mundo enfrenta sérios problemas acerca dos quais era quase inconsciente no passado. Nenhum dos que existem nos hinários trata concretamente da responsabilidade cristã de combate à poluição que destrói a condição de vida sobre a terra, não apenas a vida dos humanos, mas também a das plantas e dos animais! O combate à política de arraso da terra com a destruição das florestas e a consequente morte – e extinção! – das formas de vida nelas existentes é algo totalmente ausente nestes cânticos. Eles ignoram de forma completa o fato de que a contaminação atmosférica e das águas no mundo trará a morte muito mais dramaticamente do que qualquer armagedom que possa ser anunciado pelas igrejas.
Que dizer dos problemas que as pessoas enfrentam na sociedade, como o racismo, a pretensa superioridade dos homens sobre as mulheres, a diferenciação na remuneração destas, o desrespeito para com os direitos dos povos originários [os índios], o abandono das crianças pelas ruas das cidades e uma porção imensa de outras gravíssimas situações sociais? Se acaso existir vida consciente em outro planeta e aqui vier algum de seus ETs, ao ouvir os hinos cantados nas igrejas voltará para casa sem sequer saber que isto existe ao nosso derredor! Eles são totalmente intocados em nossos hinários! Nossos hinos nada têm a ver com as notícias publicadas nos meios de comunicação de massa.
Albert H. van den Heuvel, em seu notável artigo Novos hinos para um novo dia (trad. João Wilson Faustini, publicado primeiramente em Louvor Perene nº 34 – Julho, Agosto e Setembro de 1968 e posteriormente no site Hinologia Cristã) levanta contundentes perguntas: Onde estão os hinos que falam a respeito do nosso dever aqui na terra como cristãos e da humanização da nossa sociedade? Onde estão os hinos que nos ajudam a expressar novas visões a respeito do Deus-Rei? Onde estão os hinos que expressem, além da esperança no céu, a nossa responsabilidade aqui na terra, onde há injustiça, exploração, ganância e violência?
Não se trata em hipótese alguma de desprezar a herança do cântico cristão tradicional. Fundamentalmente, o que as igrejas precisam é tornar o seu cantar mais autêntico, mais atualizado, mais relevante, seja pela inserção de novos hinos em seus hinários, seja pela reescrita das letras de muitas de suas velhas, obsoletas e irrelevantes poesias. Se não o fizerem estarão colocando vinho novo em odres velhos, para usar uma referência do próprio Jesus.
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