O canto litúrgico: Uma proposta de composição autóctone – Simei Monteiro
Não e fácil falar de composição musical fugindo de termos técnicos e dos muitos e abrangentes métodos de composição existentes. Portanto, não estou falando de forma acadêmica, como se fosse especialista em composição musical, mas apenas quero compartilhar minha experiência como compositora.
Meu trabalho representa, como já o disse o grande mestre Osvaldo Lacerda, “o fruto de uma vivência, que só pode ser percebido por quem executa trabalho criativo, por quem enfrenta um problema e procura resolve-lo na prática,”[1]
Como o tema é extremamente vasto, neste primeiro momento vou apenas refletir sobre um aspecto importante: o da identidade cultural.
Compositores e compositoras são artistas. Entretanto, os que compõem cantos litúrgicos tendem a expressar tanto sua fé individual quanto a realidade à sua volta. São porta-vozes da comunidade de fé à qual pertencem e da qual receberam e ainda recebem elementos básicos da fé que professam.
Não compomos apenas para nós mesmos; compomos também para o nosso próximo: o nosso irmão, a nossa irmã de fé. Por outro lado, somos portadores da etnia, da tradição e da cultura de onde nascemos e onde crescemos. Portanto, o compositor ou a compositora não escreve música apenas para exercer sua criatividade ou expressar sua individualidade religiosa. Ele escreve para e com o povo, o seu povo. Estamos falando de composições litúrgicas, isto é, obras que estão a serviço do povo e que representam o serviço do povo a Deus.
Assim sendo, é preciso que a criatividade litúrgica revista a obra de formas adequadas ao tempo e lugar onde a comunidade se insere. Isso confere ao artista não apenas autenticidade, pois é ato sincero, mas também consciência de seu compromisso com a fé da comunidade. Pode parecer uma afirmação ousada, mas a melodia, o ritmo, a harmonia, a cor tonal que usamos ao compor nos são dadas através da vivência e convivência com muitas pessoas.
Volto a citar Lacerda:
Tanto o gênio musical, como o talento anônimo que, no mais recôndito rincão do país, cria uma bela canção…, pertencem inexoravelmente a mesma nação.(…) Os princípios que governam a beleza artística não são mistérios esotéricos, revelados somente aos eleitos. Se esses princípios têm algum significado para nós, devem encontrar seu fundamento naquilo que é inerente ao próprio ser humano. A perfeição formal pois, tanto pode ser encontrada na mais complexa das sinfonias, como na mais simples das melodias folclóricas. A diferença entre ambas é de grau, não de qualidade.
As grandes obras da música brasileira têm alcance universal, mas, para isso, devem, antes de mais nada, significar alguma coisa para o próprio povo do compositor e nas circunstâncias em que foram criadas (…) Nem todo compositor pode ambicionar ter uma mensagem universal, mas qualquer um pode ter o que dizer ao seu próprio povo.[2]
Como gente brasileira, mais ou menos identificada com nossa cultura musical, queremos compor uma canção original que seja, ao mesmo tempo, comprometida com nossa fé e com as nossas raízes. Infelizmente é aí que começam as dificuldades.
Nossa formação musical, obtida em conservatórios, escolas de música e cursos de universidades, nem sempre, ou melhor, quase sempre, não é suficiente para que nos sintamos a vontade com nosso idioma musical. Aprendemos muito de outros contextos e muito pouco de nosso próprio falar musical.
Por outro lado, se temos uma formação musical baseada na prática cúltica de nossas igrejas, isto é, se somos músicos amadores e fazemos musica “de ouvido”, possivelmente não conhecemos bem a nossa música brasileira pois o uso de música brasileira no culto é geralmente escasso e ainda encontra bastante resistência e até uma certa oposição.
Se fizermos um levantamento do repertório de cantos em nossas igrejas vamos ver que ainda preferimos importar música litúrgica. Temos traduzido e adaptado continuamente, desde os primórdios de nossa hinódia no Brasil, cantos de outros países, principalmente da América do Norte e da Europa. É claro que não podemos negar essa herança que nos chegou acompanhada da pregação do evangelho. Ela nos é preciosa e dela ainda recebemos mensagens abençoadas por Deus. Entretanto, torna-se necessária uma melhor percepção e avaliação dos elementos que compõem essa herança. Portanto, fazer música brasileira hoje, no contexto litúrgico, é necessário e revigorante. Contudo é ainda ato de resistência e ousadia.
Infelizmente, o conceito de tradição e de música tradicional, significando o que e próprio de um povo, se perdeu na cultura evangélica brasileira e, mais recentemente, na chamada cultura gospel.
Hoje ainda entendemos a palavra tradicional como sendo tudo aquilo que nos foi ensinado como próprio da igreja evangélica estabelecida no Brasil. Esse acervo determina uma cultura evangélica bem característica. No que se refere à música, tradicional significa o que nos foi ensinado como música sacra, sagrada porque diferente, vinda de outra realidade e às vezes entendida como oriunda do céu. Na realidade é música trazida de fora do Brasil, de outras tradições. É aqui que surge a anomalia: Não somos mais capazes de identificar o que nos seria tradicional de verdade, isto é, o fruto de nossas tradições mais preciosas, a nossa cultura brasileira.
Existe, portanto, um anacronismo na prática de compositores que criam musica litúrgica no Brasil. Ao tentar compor suas “novas canções”, acabam usando o estilo “traducional”, ou seja, quando a música, e principalmente a poesia, ainda parece uma tradução de texto e de estilo musical.
Isso e explicável, já que nosso modelo poético foi e ainda é o dos hinos e cânticos traduzidos. Esse desvio estilístico vai aparecer bem claro em elementos estranhos à nossa amada língua portuguesa. São inversões dos elementos da frase, verbos transitivos diretos sem objetos, palavras inexistentes em nosso idioma e por aí vai, em uma infinidade de frases desconexas.
Fazer música dentro de nossa tradição brasileira é recuperar esse conceito do próprio, do pertinente, do autóctone. Usar a linguagem direta, a gramática correta e a poética necessária.
Apesar das dificuldades, sabemos que nossa musica brasileira nos oferece uma enorme variedade de elementos musicais e estilísticos que estão a nossa disposição para serem apreendidos e que nos servirão de matrizes e sugestões para a criação musical litúrgica.
Contudo torna-se necessário que nos interessemos em ouvir e conhecer nossa língua e nossa música. Quando nos interessamos por nosso povo, por nossos ritmos e melodias, quando os consideramos dignos e apropriados ao culto estamos desenvolvendo um tipo de cidadania musical.
[1]LACERDA, Osvaldo C. de, Constâncias harmônicas e polifônicas da música popular brasileira e seu aproveitamento na música sacra. In Música Brasileira na Liturgia. Petrópolis, RJ, Vozes, 1968, p. 62.
[2] Idem p. 64 e 65.
© 2015 Simei Monteiro – Usado com permissão
Deus a abençoe Simei!
…somos embaixadores de Cristo, com isso, precisamos divulgar o que há de mais nobre da nossa cidade e país, lá a música entoada desde a fundação dos séculos.
Deus a abençoe Simei!
…somos embaixadores de Cristo, com isso, precisamos divulgar o que há de mais nobre da nossa cidade e país, lá a música entoada desde a fundação dos séculos.