Martinho Lutero e a composição de hinos: processos e características – Ábner Elpino Campos

Originalmente publicado no periódico Igreja Luterana, v. 79, 2019 – Elpino-Campos, Ábner. Martinho Lutero e a composição de hinos: processos e características. Igreja Luterana, v. 79, p. 59-71, 2019”

Martinho Lutero e a composição de hinos: processos e características

COMUNICAÇÃO

Ábner Elpino-Campos
Mestrando em Música Sacra, Emmanuel College, University of Toronto
Diretor de Música e Coordenador de Culto da Primeira Igreja Luterana de Toronto, Ontario, CA
camposabner@gmail.com

Resumo: Lutero, renomado reformador protestante, contribuiu para o desenvolvimento da música sacra da Igreja da Reforma. Atribui-se a ele a composição de 36 hinos que sedimentaram a forma composicional denominada de Coral Protestante. Procurou-se traçar o perfil musical de Lutero, bem como alguns dos processos e características de suas composições.

Palavras-chave: Reforma. Coral protestante. Processo composicional

Martin Luther and the hymns: music’s composing process and characteristics

Abstract: Luther, the protestant reformer, contributed to the development of sacred music of the Church of the Reformation. It is attributed to him the composition of 36 hymns that characterized the compositional form, the Protestant chorale. I tried to trace the musical profile of Luther, as well as some of your music’s composing process and characteristics.

Keywords: Reformation. Protestant chorale. Music’s composing process

Introdução

Martinho Lutero (Martin Luther, Eisleben, 1483-1546), conhecido como a personalidade principal da Reforma Protestante do séc. 16, teve papel fundamental não apenas em termos históricos da teologia (e filosofia), mas também por sua possível contribuição no desenvolvimento da música sacra de sua época e região.

A hinologia tradicional luterana tem atribuído a ele o grande avanço da hinódia na causa protestante. Entretanto pesquisadores em musicologia e história da música não têm abordado muito essa questão, mas sim os problemas de identificação, datação e autenticidade da origem de seus hinos e manifestações posteriores (SESSIONS, 1963, p. 1 – Tradução nossa).

Ao todo Lutero compôs 36 hinos, dois quais 10 são composições novas e os demais cânticos são adaptações de hinos latinos ou germânicos antigos (DREHER, 2000, p. 473-573). E para entender o processo composicional e as características de sua composição é importante levar em consideração a vivência musical de Lutero.

Experiência musical de Lutero

“Lutero foi essencialmente um produto de seu ambiente musical” afirma Sessions (1963, p. 5). Ele cresceu cercado de música (conforme PREUS, 1931, p. 98 apud DREHER, 2000, p. 475), além de cantar as músicas folclóricas dos mineiros (seus pais trabalhavam em minas de carvão), por volta do ano de 1488 passou a integrar o Coro da Escola de Mansfeld e posteriormente nos Coros das Igrejas em Magdeburgo e Eisenach (SCHEEL, 1916 apud DREHER, 2000, p. 475). Já na Universidade de Erfut estudou música, uma das sete Artes liberales do conteúdo programático da época (DREHER, 2000, p. 475). Aprendeu a tocar Alaúde e Flauta e em 1505 ao entrar no Convento da Ordem Agostiniana teve contato com o canto gregoriano (DREHER, 2000, p. 476).

No rico e variado mundo musical de Lutero, a escola de composição e performance artística predominante era conhecida como Coral Polifônico Holandês. As técnicas e as características desse estilo são distintas em todas as áreas da música, mas, particularmente, o domínio da polifonia coral era a música da Igreja. Suas origens remontam através do desenvolvimento do canto coral durante os últimos cinco séculos do período medieval para seu auge, no século XVI. (SESSIONS, 1963, p. 6 – Tradução nossa).

Dentre os seus compositores prediletos, Lutero cita em seus escritos Josquin des Prez: “… Deus tem pregado o Evangelho através da música, também, como pode ser visto em Josquin cujas composições fluem livremente, suavemente e alegremente e não ficam obrigados ou presos às regras e são como a música do tentilhão” (LUTHER’S WORKS, 54, 1967, p. 129-130). Também de Ludwig Senfl, cantor da capela palatina do imperador Maximiniano, onde, em uma carta de 4 de outubro de 1530 o descreveu como “ornado e agraciado pelo meu Deus” (ornatum et donatum a Deo meo) (DREHER, 2000, p. 474).

Processos e características composicionais

Até pouco tempo acreditava-se que as composições musicais de Lutero eram oriundas de adaptações de canções populares, já conhecidas pelas pessoas simples. De acordo com Herl (2004, p. 21-22) apenas o hino Vom Himmel hoch, da komm ich her (Eu venho a vós dos altos céus, Hinário Luterano [HL], 2016, nº 26), de 1535, apresentaria origem secular, sendo uma variação da canção Ich kumm aus frembden landen her (Eu venho de uma terra estrangeira) (Ex. 1). Esse hino foi escrito para ser encenado durante o Natal. Posteriormente, em 1539, compôs nova melodia que figura em quase todos os hinários modernos (Ex. 2).

Exemplo 1

Exemplo 1: Facsimile e transcrição da melodia do hino Vom Himmel hoch, da komm ich her, baseada na canção popular Ich kumm aus frembden landen her (Fonte: http://www.liederlexikon.de)

Muitos hinos foram adaptações dos cantos latinos antigos (gregoriano), como por exemplo, o Aus tiefer Not schrei ich zu dir (Das profundezas clamo a ti, HL, 2016, nº 349), adaptado do De profundis. Outros foram compostos ao modo gregoriano ou ao modo coral e, mesmo que Lutero tenha dado atenção especial para o uso correto das formas musicais, a sua metodologia se adaptava para que a música mostrasse o texto (DIETER, 2010, p. 34). Tal fato pode ser percebido quando Lutero trabalhou em seus Formula missae (missa latina para as Igrejas Luteranas de Wittenberg) e Deutsche Messe (missa alemã) onde as melodias gregorianas foram simplificadas e os melismas foram praticamente eliminados, os tornando praticamente silábicos (provavelmente para valorizar o texto) (DREHER, 2000, p. 477; ST-ONGE, 2003, p. 3).

Exemplo 2

Exemplo 2: Facsimile e transcrição da melodia do hino Vom Himmel hoch, da komm ich her, melodia de 1539 (Fontes: http://commons.wikimedia.org e http://www.liederlexikon.de)

Brauer (2016, p. 11) agrupa os 25 hinos atribuídos a Lutero em cinco categorias: a) comprovadamente de Lutero (Jesaia, dem Propheten, HL, 2016, nº 234, e Ein feste Burg ist unser Gott, HL, 2016, nº 165); b) plausivelmente de Lutero (Nun freut euch, HL, 2016, nº 376, Aus tiefer Not schrei ich zu dir, HL, 2016, nº 349, Ach Gott vom Himmel, sieh darein, HL 2016, nº 241, Mit Fried und Freud ich fahr dahin, Vom Himmel hoch da komm ich her, HL, 2015, nº 26, e Sie ist mir lieb, die werthe Magd); c) provavelmente de Lutero (Ein neues Lied wir heben an, Es spricht der Unweisen Mund wohl, Wär Gott nicht mit uns diese Zeit, Mensch willst du leben seliglich, HL 2016, nº 381, Christ unser Herr zum Jordan kam, Erhalt uns, Herr, bei deinem Wort, HL 2016, nº 162, e Vom Himmel kam der Engel Schaar, HL 2016, nº 40); d) arranjado/adaptado/editado por Lutero (Nun komm, der Heiden Heiland/Veni, Redemptor gentium, Christum wir sollen loben schon/A solis ortus cardine, Komm, Gott Schöpfer Veni/Creator Spiritus, Verleih uns Frieden, HL, 2016, nº 199-I/II, Herr Gott dich loben wir/Te deum, e Vater unser im Himmelreich, HL, 2016, nº 443); e) provavelmente arranjado/adaptado/editado por Lutero (Gelobet seist du, Jesu Christ, HL, 2016, nº 35, Gott der Vater wohn uns bei, Wir glauben all an einen Gott, HL, 2016, nº233, e Mitten wir im Leben sind).

Exemplo 3

Exemplo 3: Facsimile da melodia do hino Nun freut euch, liebe Christen
(Fonte: http://commons.wikimedia.org)

Schultz (2017, p. 221-222) elenca algumas características composicionais utilizadas por Lutero que otimizaram e tornaram seus hinos acessíveis ao canto congregacional. Uma dessas características está relacionada à estrutura da música folclórica alemã de sua época que era AAB. Aparentemente Lutero lança mão dessa estrutura para grande parte de suas melodias, com uma parte que se repete duas vezes seguida por uma parte melódica para finalização (ST-ONGE, 2003, p. 3). Um exemplo típico é o hino Nun freut euch, liebe Christen (Cristão, alegres jubilai/Vós crentes, todos, exultai!, HL, 2016, nº 376) (Ex. 3). “Essa estrutura AAB era simples e fácil de cantar. A repetição musical da estrutura auxiliou na memorização, tanto da melodia quanto do texto” (SCHULTZ, 2017, p. 222 – Tradução nossa).

Outra característica marcante das composições de Lutero é a extensão da melodia. Geralmente indo até uma nona (FOLEY, 1987 apud SCHULTZ, 2017, p. 222). Essa extensão pode ser observada em Vom Himmel hoch, da komm ich her (Ex.1), que apresenta extensão de sexta (Fá até Ré). Na melodia de 1539 (Ex. 2) e em Ein feste Burg ist unser Gott (Ex. 4), a linha melódica se mantém em oitava (Fá até Fá). Já no hino Nun freut euch, liebe Christen (Ex. 3) a extensão é de nona (Ré até Mi).

A terceira característica se refere aos modos em que os hinos eram compostos, sendo que, Lutero utilizou o modo com frequência o modo Dórico. Também se destaca a utilização do Jônio que, conforme Foley (1987 apud SCHUTZ, 2017, p. 222 – Tradução nossa) “eram os modos mais populares do séc. 16, …, eram fáceis e acessíveis, agora em linguagem tonal”. Na tabela 1 temos uma relação de alguns dos hinos de Lutero em relação ao modo empregado e nível de dificuldade, segundo Brauer:

Nível de dificuldade de 1 a 5, sendo “1” para os hinos mais fáceis e “5” para os mais difíceis. Essa classificação tem o intuito de demostrar as possíveis dificuldades encontradas pelas congregações de Wittenberg ao cantar as melodias. (…) Aspectos denominados difíceis o são apenas antes de serem aprendidas. (…) Essa escala numérica leva em consideração apenas a comparação ente as melodias exemplificadas. (BRAUER, 2016, p. 13 – Tradução nossa).

A relação do texto com a melodia pode ser observada no hino Ein feste Burg ist unser Gott (Deus é Castelo Forte) (DIETER, 2010, p. 34). Este autor distingue cinco pontos de ênfases, propostos por Sooy (2006), para a composição deste hino de Lutero:

Primeira ênfase é o poder e a majestade de Deus, a segunda ênfase é o senhorio de Cristo, a terceira ênfase é a fraqueza do homem, a quarta é a realidade das forças do mal no mundo, e a quinto ênfase é um reconhecimento cuidadoso de cada membro da Trindade.

Título Extensão Ritmo Modo Dificuldade HL, nº
Verleih uns Frieden Sexta Com duas síncopes Dórico (modo i) 1 199-I/II
Jesaia, dem Propheten Décima Simples Lídio (modo v) 3 234
Mit Fried und Freud Nona Sincopado e com melismas Dórico (modo i) 5
Vater unser Nona Simples Dórico (modo i) 2 443
Aus tiefer Not Sétima Com uma síncope Frígio (modo iii) 3 349
Erhalt uns, Herr Sétima Muito simples Dórico (modo i) 1 162
Vom Himmel hoch Oitava Simples Jônio (maior) 1 26
Ein feste Burg Oitava Muitas síncopes Jônio (maior) 4 165-I

Tabela 1: Modos utilizados por Martinho Lutero em algumas de suas composições e nível de dificuldade relativa a esses exemplos, levando em consideração aspectos rítmicos e melódicos.

(Fonte: BRAUER, 2016, p. 19-34)

De acordo com Grindal (1983, p. 378-379) Lutero usou de grande liberdade rítmica no Ein feste Burg, podendo observar uma quebra entre a primeira parte da melodia (que se repete) com a segunda parte (Der alt böse feind). Essa forma polirítmica pode ser difícil de executar pela comunidade (Ex. 4 e Tabela 1).

Considerações finais

Apesar de Lutero compor hinos mais simples e de ter sido responsável pela aproximação da música à congregação (leigos), tal processo não foi instantâneo e pode ter levado pelo menos 300 anos para sedimentar (HERL, 2004).

Tal fato pode ser observado nos primeiros hinários pulicados por Martinho Lutero em parceria com Johan Walter:

Os hinos de Lutero foram, inicialmente, publicados em folhas avulsas. Seu uso, porém, cedo requereu a junção dos mesmos em livro de cânticos. Para Lutero, porém, são as “notas que dão vida ao texto”. Por isso, era-lhe impensável publicar o texto sem notas. Além disso, a comunidade não estava acostumada a cantar. Quem cantava na missa era o coro. Foi baseado nessas considerações que o reformador resolveu optar pelo coro como instrumento didático-pedagógico no ensino do canto à comunidade. Na época, o órgão não tinha ainda o significado que teria mais tarde. Essa é também a razão que levou Lutero a editar, em 1524, com Johann Walther, um hinário “coral” (para coro) e não um hinário comunitário. (DREHER, 2000, p. 480)

Interessante notar que os hinos desse hinário foram arranjados a quatro (ou cinco) vozes, pelo desejo de Lutero de que “a juventude, a qual afinal de contas deve e precisa ser educada na música e em outras artes dignas (…), para (…) aprender algo sadio, de modo que o bem seja assimilado com vontade pelos jovens, como lhes compete.” (LUTERO, 1524 apud OS, 2000, p. 481).

Exemplo 4 (II)

Exemplo 4: Facsimile e transcrição da melodia do hino Ein feste Burg ist unser Gott

(Fontes: Ábner Elpino Campos, 2014 e http://www.liederlexikon.de)

Abner Elpino Campos

Referências bibliográficas:

BRAUER, James L. Luther’s hymn melodies: style and form for a Royal Priesthood. St. Louis: Concordia Seminary Press, 2016.

DIETER, Emily A. Martin Luther the worship leader: processes and methods of liturgical reform through the reformation. 38f. TCC (Graduação em Honors Program). Liberty University, Lynchburg, 2010.

DREHER, Martin N. Prefácios aos Hinários: Introdução. In: LUTERO, Martinho. Obras selecionadas: Hinos. São Leopoldo/Porto Alegre: Sinodal/Concórdia, 2000. 471-573.

FOLEY, Edward. Martin Luther: a model pastoral musician. 14 v. Currents in Theology and Mission, 1987 appud SCHULTZ, Terry L. Ethnomusicology from the 1500s: applying Luther’s revolutionary music practices to today’s mission field. 114 v. n.3. Wisconsin Lutheran Quarterly, 2017.

GRINDAL, Gracia. Disponível em: <http://wordandworld.luthersem.edu/content/pdfs/

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HINÁRIO LUTERANO. Comissão de Culto da Igreja Evangélica Luterana do Brasil. Porto Alegre: Editora Concórdia, 2016.

HERL, Joseph. Worship wars in early Lutheranism: choir, congregation and three centuries of conflict. 3ª edição. New York: Oxford University Press, 2004.

LUTHER, Martin. Table Talk. Luther’s Works. 54 v. St. Louis: Concordia; Philadelphia: Fortress, 1967.

LUTERO, Martinho. Obras selecionadas: Hinos. São Leopoldo/Porto Alegre: Sinodal/Concórdia, 2000.

PREUSS, Hans. Martin Luther Der Kiinstler. Giitersloh: Bertelsmann, 1931 apud DREHER, Martin N. Prefácios aos Hinários: Introdução. In: LUTERO, Martinho. Obras selecionadas: Hinos. São Leopoldo/Porto Alegre: Sinodal/Concórdia, 2000. 471-573.

SCHEEL, Otto. Martin Luther, Vom Kathulizismus zur Reformation, vol. 1: Auf der Schule und Universität. Tübingen: Mohr, 1916. Apud DREHER, Martin N. Prefácios aos Hinários: Introdução. In: LUTERO, Martinho. Obras selecionadas: Hinos. São Leopoldo/Porto Alegre: Sinodal/Concórdia, 2000. 471-573.

SCHULTZ, Terry L. Ethnomusicology from the 1500s: applying Luther’s revolutionary music practices to today’s mission field. 114 v. n.3. Wisconsin Lutheran Quarterly, 2017.

SESSIONS, Kyle Cutler. Luther’s hymns in the spread of the reformation. Columbus, 1963. 259f. Tese (Doutorado em Phylosophy). Graduate School, Ohio Satate University, Columbus, 1963.

ST-ONGE, Charles P. Disponível em: < http://stonge.intheway.org/documents/Music

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