HCC 130 – Oh, fronte ensangüentada!

História

130. Oh, fronte ensangüentada!

Mas ele foi ferido por causa das nossas transgressões, e esmagado por causa das nossas iniquidades; o castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos sarados” (Isaías 53.5).

Um longo poema do séc.14, Salve mundi salutari, (Salve aquele que sara o mundo) foi por muito tempo atribuído a Bernard de Clairvaux (ver HCC 316). Originalmente compunha-se de sete meditações extensas sobre o corpo de Cristo pendurado na cruz: seus pés, joelhos, mãos, lados, peito e coração. A sétima parte, Salve caput cruentatum, (Salve, cabeça ensangüentada) se focalizou na cabeça de Cristo, coroada de espinhos.

Esta parte do poema chegou até nós por meio de um longo caminho. Paul Gerhardt, considerado o maior poeta luterano desde Lutero (ver dados no HCC 108) adaptou esta sétima seção para o alemão em 1656, criando O haupt voll blut und wunden (Ó cabeça ensangüentada e ferida), hino de dez estrofes. Unido com a inesquecível melodia de Hans Leo Hassler na coletânea Praxis pietatis melica (A prática harmoniosa da piedade) de Johann Cruger, o hino ganhou fama. Muitos hinistas ingleses traduziram-no, mas foi James Alexander Waddell (1804-1859), hinista e pastor presbiteriano americano, que realmente fez viver a versão de Gerhardt no inglês. Esta versão inglesa foi traduzida para o português em 1950 pela cuidadosa mão do prof. Isaac Nicolau Salum (Ver dados do tradutor no HCC 104).

“Este é um hino profundamente devocional, que requer uma aplicação muito pessoal da morte redentora de Cristo, por relembrar seu sofrimento e morte cruel na cruz”1.

Nele o cristão reconhece que foi o seu pecado que pôs Cristo na cruz, e foi por amor a ele que Cristo sofreu ali. Este reconhecimento traz conforto e uma confissão de gratidão e dedicação a Cristo. Na quarta estrofe, o cristão pede que Cristo seja seu refúgio, guia e luz, sabendo que assim viverá e dormirá em paz.

O ilustre compositor luterano Hans Leo Hassler (1564-1612), nascido em Nurembergue, Alemanha, fez seus primeiros estudos com seu pai, Isaak Hassler. Desde muito cedo mostrou-se muito competente ao órgão. Depois de estudar com o grande organista e compositor Andrea Gabriele em Veneza, tornou-se organista, e subseqüentemente Diretor de Música da Casa dos Fugger, abastados comerciantes e banqueiros. Em 1601, aceitou o cargo de organista na Igreja Frauenkirche, em Nurembergue e, em 1608 foi escolhido organista e músico na corte de Christian II, Eleitor da Saxônia, permanecendo nesta posição até sua morte. Hassler publicou obras para órgão, madrigais, litanias, motetos sacros e dois hinários, mas esta melodia, pela qual ele é mais lembrado, foi composta em 1601 para uma letra secular. Já em 1613 apareceu como melodia para um hino ainda cantado na Alemanha, na coletânea Harmoniai sacrai (Harmonias sacras), seguindo o preceito de Lutero que “o demônio não deve monopolizar as melhores melodias”.2 Em 1656 foi unida com esta letra de Gerhardt, e desde então é associada a ela. Este choral (hino) alemão3 aparece cinco vezes na Paixão de São Mateus, de Johann Sebastian Bach (1729), e sua melodia recebeu o nome de PASSION CHORAL (Hino da Paixão).

A versão desta melodia é uma combinação das harmonizações de Johann Sebastian Bach, um dos maiores músicos de todos os tempos e membro de uma das famílias musicais mais destacadas em todo o mundo. Ao todo, Bach harmonizou um total de 371 chorales (hinos protestantes alemães), fazendo deles o verdadeiro centro da sua imperecível obra.

Há amplas fontes de informação em outros livros sobre este gênio musical. Todavia, a riquíssima herança de música sacra deixada por este cristão dedicado merece nossa atenção aqui. Nascido em Eisenach, Alemanha, em 21 de março de 1685, estudou nas escolas corais de Ohrdruf e Lüneburgo. Aprendeu a tocar órgão, violino e viola (seu instrumento predileto). Copiava e estudava cuidadosamente a música dos mestres. Aproveitou todas as oportunidades de ouvir e aprender de outros mestres, mesmo com grande sacrifício. Depois de servir em duas posições por curtos períodos, passou o resto da sua vida em três cidades: Weimar (1708-1717), Cöthen (1718-1723), e Leipzig (1723-1750). Bach compunha constantemente, mesmo quando tinha uma outra ocupação. Contribuiu significativamente para a literatura da sonata (inventou a sonata para instrumento solo), do concerto italiano e da suíte e abertura francesas, e promoveu

“a afinação temperada (homogênea) (…) em que os intervalos do teclado deviam ser iguais, sistema que se utiliza ainda hoje nos instrumentos de teclado.”4

Mas os melhores momentos e a maior parte da sua obra foram dedicados à música sacra. “Bach escreveu cinco coleções de composições sacras para cada domingo e Dia de Festa do ano,”5 aproximadamente 300 cantatas, 5 paixões, 2 Magnificats, uma Missa Solene e diversas missas curtas para a liturgia luterana, oratórios bíblicos, 5 Santus, motetos, obras vocais, um vasto repertório para órgão, tanto sacro como secular e inúmeras peças para teclado e para orquestra. Uma edição monumental das obras de Bach consiste de 47 volumes, e ainda se sabe que muitas das suas obras foram perdidas.

“Bach aplicou nestes trabalhos a sua vasta erudição musical, a sua técnica virtuosística e a procura da perfeição, de tal modo que o resultado final ultrapassou tudo o que antes fora feito nestes campos”.6 

Ninguém chegou a ultrapassá-lo desde então!

Albert Schweitzer, missionário-médico e músico de destaque, disse:

“Bach era um poeta, e este poeta foi, ao mesmo tempo, um pintor”7.

Explicou que na alma de Bach se amalgamavam em proporções infinitamente variáveis, os dons de poeta, de pintor e de músico. Certamente isto explica em parte a sua obra inigualável.

Bach foi feliz chefe de família. Foi pai de 20 filhos, 7 com sua primeira esposa, Maria Bárbara, e 13 com a segunda, a destacada musicista Ana Madalena. Onze morreram na infância. Tanto cuidou da educação musical dos seus filhos, como compôs muito para este fim. Diversos dos seus filhos e netos lhe seguiram em carreiras brilhantes.

Mas a característica predominante de Bach era a sua fé. Disse Henriqueta Braga:

“[Era] o mais excelente ministro de música. Para Bach o único objetivo de toda a música deve ser a glória de Deus e uma recreação agradável”.8 Tudo que Bach fazia, fazia “guiado por suas convicções religiosas, conduzido pela fé e sempre suplicando a inspiração divina, como o atestam as letras J. J. (Jesu, juva – Jesus, ajuda-me) que caracterizavam os manuscritos de suas composições autênticas. Ao terminá-las, invariavelmente juntava as iniciais S. D. G. (Soli Deo gloria – Somente a Deus a glória).9

Em julho de 1750, alguns dias antes de morrer, Bach [que por muito tempo sofria dos olhos e havia um ano estava completamente cego] completou um arranjo para órgão do hino Quando na hora de maior provação, cujo título, no último instante, mudou para Diante de teu trono, ó Deus, mostrando uma extraordinária coerência entre a música que produziu e a vida que viveu.10

1. POLMAN, Bert. Oh sacred head now wounded. Em: HUSTAD, Donald P. The worshiping church: a hymnal. Worship leader’s edition. Carol Stream, IL: Hope Publishing Co., 1990. n. 221.

2. MANN, William. A música no tempo. Lisboa: Gradiva, 1982. p.80.

3. “O coral (choral) é uma ampla melodia adaptada a um texto versificado – Salmo ou hino – destinado à execução coletiva nos templos (canto congregacional)”. BRAGA, Henriqueta Rosa Fernandes. Do coral e sua projeção na história de música. Rio de Janeiro: Livraria Kosmos Editora, s/d. p.19. [Ver a “Projeção do choral na história da música” neste livro.]

4. Ibid., p.93.

5. SLONIMSKY, Nicolas, ed. Baker’s biographical dictionary of musicians, 6ª ed., New York: Schirmer Books, 1978. p.265.

6. MANN. Op. cit., p.94.

7. SCHWEITZER, Albert. J.S. Bach, el musico – poeta. Trad. Jorge D’Urbano. Buenos Aires: Ricordi, 1955. p.265.

8. BRAGA, Henriqueta Rosa Fernandes. Johann Sebastian Bach, O mais excelente ministro de música. Ultimato, Ano XVIII, n.162, março 1985. p.9.

9. BRAGA, Do coral..., pp.71-72.

10. Ibid.

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