Hans Staden e os Primeiros Cânticos Evangélicos entoados no Brasil – Henriqueta Rosa Fernandes Braga

HANS STADEN E OS PRIMEIROS CÂNTICOS EVANGÉLICOS ENTOADOS NO BRASIL

 

Aus tiefer Not schrei ich zu dir

No próprio século do Descobrimento do Brasil, que também foi o da Reforma, soaram em nossas plagas os primeiros cânticos evangélicos. Inicialmente, na execução individual de viajantes alemães luteranos, como HANS STADEN e, possivelmente, HELIODORO EOBANO e ULRICO SCHMIDEL, que aqui estiveram na mesma época, mas trazidos por diferentes circunstâncias; depois, entoados em conjunto pela Igreja Calvinista, na baía de Guanabara.

HELIODORO EOBANO, ao que se sabe, foi gerente do engenho de açúcar do genovês JOSÉ ADÔRNO em São Vicente, São Paulo, sendo-lhe atribuídas, também, as funções de escrivão nesse lugar; parece ter participado, como guia, de bandeiras que penetraram em território do atual Estado do Paraná e, segundo se acredita, deu a vida pelo Brasil como soldado, em Cabo Frio. Era filho de HÉLIO EOBANO HESSEN (1488-1540), o famoso humanista de Erfurt e Marburgo, amigo particular do Reformador MARTINHO LUTERO.

ULRICO SCHMIDEL, considerado o primeiro historiador do Rio da Prata, participou em 1534 da expedição de PEDRO MENDONZA ao Novo Mundo, onde se demorou cerca de vinte anos. Esteve em Buenos Aires (Argentina), Assunção (Paraguai) e São Vicente (Brasil). De Assunção a São Vicente viajou a pé, tendo gasto seis meses no trajeto. Alcançou o litoral paulista em 1553 onde, auxiliado por PEDRO ROESEL, guarda-livros já citado genovês JOSÉ ADÔRNO, conseguiu embarcar a bordo de um navio açucareiro para a Europa, a chamado do irmão. Chegou a Straubing na Baviera, sua cidade natal, pouco tempo antes da morte deste, herdando-lhe parte dos bens e o brasão da família. Anos mais tarde, em 1562, veio a sofrer perseguição religiosa e consequente desterro por motivo de haver tomado parte ativa, a favor da Reforma, nas agitações que sobrevieram no seio do próprio Conselho citadino, do qual era membro. Refugiou-se na imperial cidade de Regensburg. Cinco anos depois, fez publicar em Francfort-sobre-o-Meno a obra que lhe haveria de trazer celebridade – Verídicas descrições de várias navegações como também de muitas partes desconhecidas[1] – Na qual narra suas viagens pela América do Sul.

Como alemães luteranos, de fé revigorada pelo ímpeto da Reforma incipiente, não duvidamos tenham HELIODORO EOBANO e ULRICO SCHMIDEL, muitas vezes, entoado no Brasil cânticos religiosos (corais) adequados aos seus momentos de angústia ou satisfação, pois assim o fez HANS STADEN, conforme o seu próprio testemunho, que passamos a narrar.

Hans Staden

Natural de Homberg, em Hessen, foi HANS STADEN um dos primeiros evangélicos a pisar em terras de Santa Cruz. No livro de memórias que publicou em 1557 em Marburgo, Alemanha, sob o título Descrição verdadeira de um país de selvagens…[2] dedicado ao Landgrave de Hessen, deixa entrever seu conhecimento das Sagradas Escrituras e a fé que nunca desamparou nos negros e incertos dias em que viveu entre os tupinambás. Pretendia conhecer a famosa Índia, porém, determinadas circunstâncias modificaram os seus planos. Esteve no Nordeste brasileiro e regressou a Lisboa. A seguir, viajando em veleiro espanhol partido de São Lúcar, na Espanha, no quarto dia depois da Páscoa do ano de 1549, com destino ao Rio da Prata, sofreu Naufrágio em Itanhaém, no litoral do Brasil, tendo sido, juntamente com outros náufragos, acolhido pelos portugueses em São Vicente, São Paulo. Aí travou relações com HELIODORO EOBANO, anteriormente referido, do qual dá notícia em sua obra ao mencionar a visita que dele recebeu na véspera de ser aprisionado pelos selvagens. Quando isto aconteceu, desempenhava HANS STADEN, por contrato com os portugueses, as funções de artilheiro no Forte construído na Ilha de Santo Amaro, defronte à Bertioga.

Vindo a cair em poder dos tupinambás, que o cercaram na ocasião em que saíra à procura de um serviçal que fora caçar, sua grande aflição levou-o a implorar o socorro divino. Orou a Deus e buscou, na recordação de Salmos apropriados, a consolação de que tanto carecia e que lhe foi outorgada. Assim é que, ferido, sangrando e rodeado de selvagens que ameaçavam devorá-lo, HANS STADEN ergueu a voz e entoou o Salmo 130: “Das profundezas a ti clamo, ó Senhor” cuja versão alemã “Aus tiefer Not schrei ich zu dir”, por ele cantada, fora preparada e musicada em forma de coral[3] por MARTINHO LUTERO alguns anos antes, em 1523, e publicada no ano seguinte em Wittenberg, na primeira coleção editada pelo Reformador: Etlich Christlich Lieder Lobgesang und Psalm (geralmente conhecida como Achtliederbuch). Muito estimado por LUTERO, este Salmo, que é o célebre De profundis, tinha sido cantado em seu funeral, em 1546, e permanecia um dos corais preferidos nesses primeiros e difíceis tempos da Reforma, quando os seus adeptos encontravam muitas oportunidades de entoá-lo porque se tornara, por excelência, o verdadeiro grito de angústia dos sofredores. Estampamos a sua melodia em folha fora do texto, em fac-símile de uma edição de corais publicada em Mogúncia em 1525, por JOÃO WALTHER, amigo e colaborador musical de LUTERO[4]; e publicamo-lo a seguir, com harmonização de J. S. BACH datando de dois séculos mais tarde e por ele preparada para figurar na Cantata n.º 38, numa adaptação portuguesa do Prof. ISAAC NICOLAU SALUM, realizada em 1955.[5]

Após acerba desilusão com respeito a um europeu em quem confiara, dele esperando que intercedesse favoravelmente em prol da sua liberdade, voltou-se para Deus e recordou, em alta voz, o versículo que se encontra em Jeremias 17:5 – “Maldito o homem que no homem confia” – e, conforme refere em sua obra, entoou o coral Nun bitten wir den Heiligen Geist[6] (Agora pedimos nós o Espírito Santo), com isso atraindo a atenção dos silvícolas, particularmente propensos à música. Este coral, um dos primeiros que LUTERO preparou para o uso eclesiástico, é contemporâneo de Aus tiefer Noth, tendo, igualmente, integrado a coleção corálica de 1524. De profunda expressividade, encerra em sua primeira estância um hino tradicional da Idade Média (séc. XIII) burilado pelo Reformador, que lhe acrescentou mais três estrofes de sua própria lavra para completar a invocação ao Espírito Santo nele contida. Era muito apreciado entre os fiéis luteranos e a sua execução deve ter proporcionado a HANS STADEN, na precária situação em que se encontrava, o desejado conforto espiritual.

Segue-se o mesmo coral com harmonização de J. S. BACH, realizada no séc. XVIII, em adaptação portuguesa (1957) do Rev. ANTÔNIO DE CAMPOS GONÇALVES, expressamente preparada para figurar no presente trabalho.

Sempre sob a terrível ameaça de ser morto e devorado pelos canibais que retinham o prisioneiro, viu-se certa vez, em que particularmente o afligiram, obrigado a cantar. Obedecendo à intimação, entoou vários cânticos espirituais. Quiseram os selvagens saber o que estes significavam, tendo-lhes explicado HANS STADEN (que aprendera a língua dos tupinambás antes de ter sido por eles aprisionado) tratar-se de versos ao seu Deus. Por motivo de seus hinos, orações e recitativo de Salmos e outros trechos bíblicos em alta voz, teve o prisioneiro múltiplas oportunidades de falhar-lhes de Deus; como orasse com fervor e fossem ouvidas as suas súplicas, apoderou-se dos tupinambás certo temor e respeito em relação à sua pessoa, graças aos quais lhe pouparam a vida, receosos de perderem as suas caso lhe fizessem mal.

Mediante o auxílio de navegadores franceses que mantinham comércio com os indígenas, conseguiu HANS STADEN libertar-se e regressar à Europa; isto, porém, após várias tentativas infrutíferas, que foram descritas em sua obra. Partiu de volta à Europa em 31 de outubro de 1554, tendo chegado a Honfleur, na Normandia, a 20 de fevereiro de 1555.

Nesse mesmo ano deixou a França, com destino ao Brasil, a expedição chefiada por VILLEGAIGNON. Dois anos mais tarde, a ela veio juntar-se uma plêiade de ardorosos genebrinos que desfraldaram em terras da Guanabara a bandeira do puro Evangelho de Cristo, vindo a pagar alguns deles, com a própria vida, o elevado preço da fidelidade às suas convicções religiosas.

Henriqueta Rosa Fernandes Braga (In Memoriam)

Referências Bibliográficas:

-BRAGA, Henriqueta R. F. Música Sacra Evangélica no Brasil. Rio de Janeiro:  Livraria Kosmos Editora, 1961

[1] Publicada originalmente em alemão (ULRICH SCHMIDEL. Wahrhafftige Berschreibunge aller und marcherley sorg feltigen Schiffarten…Franckfurt am Main, 1567), dela se tiraram sucessivas edições, considerando-se a melhor a que LEVINUS HULSIUS editou em latim (Vera historia admirandae cujusdem navigationes quam Huldericus Schmidel…ab anno 1534 ad annum 1554, in American juxta Brasiliam at Rio de la Plata confecit. Nuremberga, 1559). Foi traduzida para várias línguas, sendo que, em espanhol, a versão preferida é a de QUEVEDO com notas bibliográficas e biográficas de BARTOLOMEO MITRE (ULRICH SCHMIDEL. Viaje al Rio de La Plata. Buenos Aires, 1903).

[2] (Hans Staden. Warhaftige Historia und beschreibung eyner Landschafft der wilden… Marpurg, 1557). Esta obra alcançou numerosas edições em alemão e  foi vertida para os idiomas holandês, francês, inglês e português, língua na qual  existem pelo menos duas diferentes traduções: uma pelo Dr. ALENCAR ARARIPE, publicada em 1892 na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, e outra pelo

Dr. ALBERTO LÖFGREN, promovida em 1900 pelo Instituto Histórico de São Paulo ao ensejo da comemoração do IV Centenário do Descobrimento do Brasil, tradução mais tarde ordenada por MONTEIRO LOBATO e atualmente esgotada (HANS STADEN. Suas viagens e cativeiro entre os índios do Brasil. Quarta edição. São Paulo, Cia. Editora Nacional. 1945). Mas o público interessado continua a ter a obra ao seu alcance, pois a tradução de LÖFGREN, revista por TEODORO SAMPAIO, conforme a Edição da Academia Brasileira de Letras, acaba de ser reeditada (HANS STADEN. Viagem ao Brasil. Salvador, Bahia, Livraria Progresso Editora, 1955)

As referências aos trechos sacros cantados por HANS STADEN na selva brasileira, claramente expressas no original alemão, que pode ser encontrado na Seção de Obras Raras da Biblioteca Nacional, onde buscamos as informações a esse respeito aqui contidas, são apenas vagamente mencionadas nas traduções brasileiras, o que não permite a sua caracterização. Os dois corais citados no original pertencem à melhor produção no gênero; possuem grande valor histórico por terem sido dos primeiros preparados pelo Reformador MARTINHO LUTERO; e são hoje amplamente conhecidos através da obra de J. S. BACH que, dois séculos mais tarde, os incluiu em algumas de suas célebres Cantatas (Aus tiefer Noth, na Cantata do mesmo nome, n.º 38; Nun bitten wir den Heilign Geist, nas Cantatas ns. 169 e 197).

[3] Com duas diferentes harmonizações de J. S. BACH, este coral pode ser encontrado em LUDWIG ERIK. Johann Sebastian Bach’s mehrstimmige Choralgesänge und geistliche Arien. Leipzig, C. F. Peters, 1850. Vol. I, n.º 150 e vol. II, n.º 166.

O hinário brasileiro Salmos e Hinos apresenta, sob o n.º 22, uma metrificação deste Salmo da autoria de SARA KALLEY, embora com música diferente da que foi cantada por HANS STADEN.

[4] De acordo com o uso da época, a melodia situava-se no tenor ao invés de vir no soprano, como hoje acontece; e cada voz (soprano, contralto, tenor e baixo) era publicada num volume à parte, como se poderá observar no fac-símile, em folha fora do texto, que focaliza o volume do tenor.

[5] Esta adaptação portuguesa de Aus tiefer Not foi feita pelo Prof. ISAAC NICOLAU SALUM para figurar numa coleção de Corais de J. S. BACH, com anotações históricas, a ser publicada pela autora deste trabalho.

[6] Dele existem três harmonizações por J. S. Bach. Vide Ludwig Erk. Ob. cit. Vol. I, ns. 92 e 93; vol. II, n.º 269

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