A influência de Calvino – Rolando de Nassau

Especial para “Hinologia Cristã”

Dos três principais Reformadores (Martin Luther, Huldrich Zwingli e Jean Calvin), Calvino era provavelmente o menos capacitado para a técnica musical, mas era um esteta, conhecia as ideias e teorias musicais da Idade Média e da Antiguidade. Conscientemente, eliminou a admissibilidade do aproveitamento da tradição católica, da música erudita e das canções folclóricas profanas.

Sua atitude em relação à música era condicionada por sua estrita obediência à Bíblia. Acreditava que a música tinha origem divina e função espiritual. Preocupava-se com a possibilidade de ocorrerem abusos na execução musical, causados pela vaidade do executante. Por isto, omitiu o canto no altar, que afinal foi abolido; também porque o latim era incompreensível à maioria da congregação. O canto dos salmos devia ser executado por toda a congregação, e não apenas pelo pastor.

Calvino entendia o canto de salmos como sendo uma oração. Para Calvino, havia diferença entre a música religiosa e a música profana, entre o canto para culto na igreja e o canto para entretenimento no lar.

Ele vetava o recurso ao “contrafactum”, isto é, emprestar um texto religioso a uma melodia profana pré-existente.

Este procedimento significava modificar palavras do texto profano para obter uma versão religiosa; assim, uma canção de amor profano tornava-se um cântico de louvor a Deus.

Somente a música diretamente ligada a um texto, e compreensível pela congregação, era justificada no culto. O canto, uníssono e no vernáculo, sem acompanhamento instrumental, tornou-se a única forma de música na igreja reformada.

Calvino dispensava o acompanhamento instrumental; ele queria manter a integridade do culto. A música devia ser “convenable au sujet” (conveniente ao assunto da letra).

Não era o tratamento das palavras o importante, mas o estilo que se ajustasse ao culto divino (que deveria ser majestoso, moderado e modesto), e que fosse basicamente diferente do estilo profano, “léger et volage” (ágil e volúvel). O estilo sacro pode evocar alegria, mas uma alegria casta, não sensual.

Calvino, conscientemente, eliminou a tradição católica. A ênfase da Igreja Reformada no combate à imoralidade rejeitou a música folclórica e popular do século 16. Restou aos compositores reformados uma alternativa: compor música de acordo com os ideais reformistas, expressos por meio de salmos parafraseados, para serem cantados pelas congregações. O Saltério seria a única fonte do canto congregacional (ver: Arnold Geering, “Calvin und die Musik”, in Calvin-Studien, ed.J.Moltmann. Neukirchen, 1960).

Houve intercâmbio entre os músicos e os reformadores franceses refugiados na Suíça e na Alsácia.

Calvino estipulou que somente um salmo seria cantado antes do sermão; mais tarde, ordenou que fossem cantados salmos no começo do culto, antes e depois do sermão, nos cultos matutino e vespertino do domingo (ver: Friedrich Blume, Protestant Church Music. London: Victor Gollancz, 1975). Ele queria integrar toda a igreja no canto.

Em Basiléia (1537) e Genebra (1541) ordenou a introdução dos salmos para “melhor convidar o povo a orar e louvar a Deus” começando pelas crianças (Calvino dava importância ao coro infantil), “depois, com o tempo, toda a Igreja”. Em 1545 aconselhou que as famílias cantassem também nos seus lares.

Calvino permitiu arranjos polifônicos, “non pas pour induire à les chanter en l’Église” (não para induzir alguém a executá-los na igreja), que eram usados pelos calvinistas em suas residências, como forma de evitar as composições profanas. Desde 1551 surgiram, para uso doméstico, edições com as melodias do Saltério, harmonizadas a várias vozes, preparadas por Claude Goudimel (1510-1572), compositor reformado, morto no massacre da noite de São Bartolomeu, em 24 de agosto de 1572 (ver: Alexandre Cellier, La valeur musicale des Psaumes de la Réforme française. Paris: 1950; Alfred Colling, Histoire de la Musique Chrétienne. Paris: Fayard, 1956).

Em 1991, alguém tentou fazer crer que as melodias do Saltério de Genebra, patrocinado por Calvino, são adaptações de canções folclóricas; que Louis Bourgeois estava entre os compositores que usavam como assunto qualquer material; e que, na época (século 16), a diferença estilística entre a música sacra e a profana quase não existia.

A teoria de O.Douen (1879) de que a origem das melodias do Saltério de Genebra estava principalmente em canções folclóricas, não é mais sustentável, depois de ter sido contraditada por C.Haein (1926) e H.Hasper (1949). Ambos afirmam que as raízes das melodias do Saltério genebrino estão principalmente em canções eclesiásticas medievais, em conformidade com um expresso propósito de Calvino, que almejava um estilo melódico distinto para o canto congregacional da Igreja Reformada, perceptivelmente diferente do estilo melódico da canção folclórica. Entretanto, os traços característicos do Saltério de Genebra, na opinião de Walter Blankenburg (1953), são encontrados não somente em sua melodia, mas também em seu ritmo. Portanto, havia considerável diferença estilística entre a música de igreja e a música profana (ver: “Louvor”, abr/jun 1991; OJB, 12 jan 1992).

Calvino faleceu em Genebra, em 27 de maio de 1564.

Ainda vivia, quando sua influência chegou ao Brasil.

Nicolau Durand de Villegaignon (1510-1571) solicitou a Jean Calvin e à Igreja Reformada de Genebra (Suíça) o envio de pastores ao Rio de Janeiro. Pierre Richier e Guillaume Chartier chegaram em 10 de março de 1557 com o propósito de estabelecer no Brasil uma Igreja Reformada; nesse mesmo dia, foi realizado o primeiro culto evangélico em nossa pátria, quando os calvinistas entoaram o Salmo 5, “Dá ouvidos às minhas palavras, ó Senhor” (Aux paroles que je veux dire, plaise-toi l’aureille prester), de Marot e Bourgeois (Ver: Henriqueta Rosa Fernandes Braga, Música Sacra Evangélica no Brasil. Rio de Janeiro: Kosmos, 1961).

Em 14 de fevereiro de 1630, o pastor holandês Johan Baers oficiou culto reformado após a conquista de Olinda e Recife (PE) por Maurício de Nassau.

Os primeiros hinos evangélicos cantados no Brasil, em língua portuguesa, foram entoados na Escola Dominical fundada, em 19 de agosto de 1855, em Petrópolis (RJ), pelo casal de missionários congregacionalistas Robert R. Kalley e Sarah P. Kalley (ver: H.R.F.Braga, 1961).

O Saltério de Genebra (1562) ainda é cantado em pleno século 21!

Os hinários “Cantai Todos os Povos”, “Seja Louvado”, “Hinário Evangélico” e “Salmos e Hinos” contêm salmos metrificados, cuja origem está no Saltério genebrino (ver: João Wilson Faustini, “O Estandarte”, fev. 2009).

Calvino, na observação de Otto Maria Carpeaux (ver: História da Literatura Ocidental, vol. I-A. Rio de Janeiro: Edições “O Cruzeiro”, 1961), “é uma personalidade menos espetacular, mas não menos poderosa do que Lutero”.

A influência de Calvino sobre a música reformada pode ser expressa pelos seguintes princípios: 1) a função da música no culto divino deriva do reconhecimento da natureza da música; ela tem grande poder de comover o coração humano, por isso ela deve incentiva-lo a invocar e louvar a Deus; 2) a música deve ajustar-se ao texto, por isso deve evitar que sucumba ao perigo do sensualismo; 3) a música de origem profana deve ser banida do ambiente sacro; 4) o estilo sacro pode evocar alegria na execução musical, mas esse sentimento deve ser casto, não sensual; 5) a tarefa de executar um canto no culto deve exigir que o texto tenha um forte vínculo com a Bíblia.

Esses princípios de Calvino resultaram que as igrejas calvinistas adotaram o uso exclusivo ou preferencial do Saltério no canto congregacional.

Brasília, DF, 18 de maio de 2015.

Rolando de Nassau.

© 2015 de Rolando de Nassau – Usado com permissão
Doc. HC-29

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