A hinodia e a propaganda imperialista – Roberto Torres Hollanda

A hinodia e a propaganda imperialista
Especial para “Hinologia Cristã”

A hinodia pode refletir a situação religiosa e política de um país. O que você está cantando em sua igreja tem alguma relação com sua fé cristã ou sua posição política. Pode ser usada para construir, manter ou desfigurar, para criticar ou desafiar a realidade popular e a cultura nacional.

Impressionou-me bastante a coragem e lucidez de um artigo escrito em 2015 pela pesquisadora universitária Gertrud Tönsing a respeito do poder dos hinos e canções no Império Britânico e na antiga colônia da África do Sul.

Quero focalizar hinos escritos nos séculos 18 e 19 que firmaram as estruturas do Império Britânico; a teologia anglicana foi testada pela hinodia usada na Igreja da Inglaterra. Os sermões teológicos e os discursos políticos podem ser lembrados ou esquecidos por causa de certos hinos. Os seminários e os partidos estão disputando as mentes dos eleitores.

Dentre os hinos examinados, extraí seis para comentá-los com os visitantes deste “site”.

Estes, escritos entre 1720 e 1870, marcaram etapas do desenvolvimento espiritual dos Ingleses. Nesses 150 anos, os crentes foram assediados pela propaganda imperialista.

Em 1645 o periódico particular “Mercurius Aulicus” tinha a função de comunicar ao povo inglês os assuntos da Corte. Temendo a crescente popularidade da propaganda, o rei Jaime (Tiago II) baniu esses periódicos; alegou em sua proclamação que era necessário restringir a liberdade de opinião; isto aconteceu pouco tempo antes de ter sido forçado a fugir de Londres.

Uma das primeiras providências do novo Governo foi criar um órgão de propaganda. Jeffrey Richards demonstrou que a propaganda influenciou a música dos séculos 18 e 19 (ver: Imperialism and Music. Manchester: University Press, 2001).

O hino missionário de Isaac Watts (1674-1748), “Jesus shall reign” (Jesus reinará), escrito em 1719, o primeiro a tratar deste tema, refletiu a visão-de-mundo do autor, logo adotada por igrejas evangélicas. Watts, décadas antes do movimento expansionista das igrejas, então evangelizadoras, revelou-se um hinógrafo à frente do seu tempo. Sua ideia imperialista é confessada: seria cantado por “povos e reinos de todas as línguas”; faz alusão à Europa civilizada, à Pérsia e à Índia, povos subdesenvolvidos que eram de importância econômica para o Império Britânico, e às nações bárbaras; embora figuradamente, afirma que “todas as criaturas trarão honras peculiares ao nosso rei”. A elaboração do hino coincidiu com o engrandecimento do Império Britânico (ver: “Hinologia Cristã”, nov.2016).

Cem anos depois, Reginald Heber (1783-1826) exaltou o papel cívico e religioso dos missionários ingleses. Indiretamente, justifica a subjugação física e submissão cultural de outras nações, em nome da divulgação da mensagem cristã.

O motivo primário, no início do século 18, era o crescimento econômico do Império; o caráter altruístico do imperialismo foi item da pauta da propaganda quando o Império necessitou de uma doutrina que justificasse a expansão territorial. Implicitamente, tinha a ideia de que a “raça” britânica era a mais importante, e, por isso, deveria levar a justiça às “raças inferiores”; era a ideia de que o Império não agia em seu próprio benefício, mas dos que lhe eram submetidos.

Como exemplo, citamos o hino “From Greenland’s icy mountains” (De um ao outro polo), escrito por Heber em 1819. No Brasil, Guilherme Luiz dos Santos Ferreira (em 1886) e Alfredo Henrique da Silva (em 1900) traduziram para o idioma português, aproveitado por João Gomes da Rocha, que viveu sob forte influência da hinógrafa escocesa Sarah Kalley.

Há hinos em que as imagens reais são provenientes da Bíblia e não apresentam problema teológico; mas, no contexto do Império, reforçam a visão hierárquica e reafirmam o poder da Igreja Anglicana, lembrando que Deus age por intermédio de governantes humanos, com estas palavras: “com Teu julgamento, expurga este reino das coisas indesejáveis”. O exemplo é o hino “Crown Him” (Oh! Venham coroar!), de Matthew Bridges (1800-1894), escrito em 1851, que, pela mão de John Henry Newman, ingressou no Catolicismo.

Há os que usam imagens militares; fácilmente são usados para construir a “moral da tropa”.

Neste nosso tempo, a fé religiosa e o militarismo são considerados inteiramente compatíveis.

O hino “Soldiers of the Cross”, de William Walsham How (1823-1897), escrito em 1854, enfaticamente diz: “Soldados de Cristo, levantai! Usai a  vossa armadura, porque os vossos inimigos são poderosos e dura a batalha que deveis lutar. Confiai no poder de Deus, até que os reinos do mundo se rendam ao reino do Senhor”. Esse hino justifica as guerras em nome da expansão do reino de Deus.

O de Sabine Baring-Gould (1834-1924), “Onward , Christian Soldiers” (Salvador bendito),  foi escrito em 1864 para um tradicional desfile, em que crianças marchavam. O texto tem sido associado com o imperialismo militar, amparado na fé cristã, testado em conflitos ao redor do mundo, que assimilou a propaganda do Império Britânico.

Outros hinos, incluído o “Stand up for Jesus” (Lutai por Cristo), de George Duffield Junior (1818-1888), têm em comum a ideia de que a guerra pode ser interpretada em termos físicos ou espirituais; estes foram um pilar importante na construção sócio-psicológica do Império Britânico: um poder militar para o bem das nações. Essa ideia foi herdada pelos Americanos que lutam em várias partes do mundo para implantar a liberdade e a democracia em países totalitários.

O de John Ellerton (1826-1893), “The day Thou gavest, Lord” (Senhor Jesus, ó, vem me conceder), escrito em 1870, em pleno apogeu do impe- rialismo britânico, aproveita a retórica imperial: “o sol nunca se põe”, e aplica-a à Igreja de Deus, “mesmo que os impérios orgulhosos da Terra passem”. Alguns comentaristas do hino consideram Ellerton “uma parte da era imperialista”, quando faz “uma oração de gratidão a Deus pela expansão da Igreja no mundo”, numa expressão do imperialismo cultural e militar do final do século 19; celebra a expansão da Igreja enquanto o Império também se expande. O cantor deste hino pode contemplar e comparar a extensão territorial conquistada, pelos cristãos e pelos soldados. Ellerton pelo menos reconheceu que “os impérios orgulhosos da Terra passarão”.

Em 1820 foi oficialmente permitida a execução de hinos nas igrejas anglicanas. A rainha Victoria ascendeu ao trono em 1837. Desde então, cresceu muito a produção de música sacra erudita para ser executada nas catedrais inglesas; consequentemente não havia oportunidade para a hinodia.

Nesses seis hinos podemos perceber que os crentes podem cair na tentação de confiar na grandeza material de suas pátrias bem amadas, às vezes utilizada para oprimir nações pobres e povos ignorantes.

Fonte:
SONGS AND HYMNS OF IMPERIAL BRITAIN.
HTS THEOLOGICAL STUDIES, VOL.73, No.3
https://dx.doi.org/10.4102/hts.73i3.3637
http://scielo.org.za/scielo.php?

Brasília, DF, em 18 de setembro de 2021.

Roberto Torres Hollanda (Rolando de Nassau).

© 2021 de Roberto Torres Hollanda – Usado com permissão

Doc.HC-113

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1 Resultado

  1. Pr Paulo Brito disse:

    Quando cantamos que devemos lutar, o correto é estarmos querendo dizer da luta espiritual! Nunca uma luta contra seres humanos!
    Se houve expansão do império Ingles, isto nunca agradou a Deus!
    Cantamos o nosso general é CRISTO! Nenhum inimigo nos resistirá ! Esses inimigos não são pessoas! Nossa luta não é contra a carne !!!
    Se alguém entende diferente não tem o espírito de Cristo!
    Amai os vossos inimigos! Abençoai os que vos perseguem! Está é a mensagem do evangelho!

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