A Reforma e a Música Sacra – Rev. João Wilson Faustini
Os cristãos atuais herdaram cânticos de três grandes fontes hinológicas provenientes da Reforma ocorrida principalmente na Alemanha, em Genebra na Suíça e na Inglaterra.
Esses cânticos deram maior vitalidade e versatilidade aos estilos musicais na liturgia dos cultos reformados.
Música
Como era a música na Idade Média, na época da Reforma? A música de Genebra por volta de 1635, por exemplo, representa um ponto alto da música da época, e possivelmente soa um tanto estranha aos nossos ouvidos modernos, não habituados a ouvi-las. Nossos ouvidos estão programados desde o nosso nascimento, a ouvir a música contemporânea, que nós chamamos de “normal”. A música antiga raramente tinha “saltos” entre um som e outro, mas geralmente eram sons vizinhos dentro da escala musical.
Uma diferença fácil de se perceber, é que a música antiga, seja ela rápida ou lenta, alegre ou triste, cria, ainda hoje quando executada, uma atmosfera inconfundivelmente solene, de reverência, dignidade e respeito.
Os textos
De modo geral os cânticos da época da Reforma focalizaram:
1) Na glória e majestade de Deus, expressando grande reverência e a dignidade de Deus.
2) No ensino da doutrina e das grandes verdades bíblicas
3) Eles refletem: Deus, o pecado, a graça divina, a obra redentora de Cristo, a Palavra de Deus, a Igreja e os Sacramentos
As doutrinas dos cinco “SOLAS” nortearam a grande parte da teologia dos cânticos: Sola Scriptura (Somente a Escritura); Solus Christus (Somente Cristo); Sola Gratia (Somente a graça); Sola fide (Somente a fé) e Soli Deo Gloria (Somente a glória de Deus)
Muitos dos textos dos corais do tempo de Lutero eram traduções de textos Latinos antigos que foram traduzidos para o alemão: Ex: Veni creator Spiritus – Komm Heliger Geist (Vem, Santo Espírito de Deus) Salve caput cruentatum – O Haupt voll Blut und Wunden (Ó fronte ensanguentada) etc…
Muitos textos bíblicos e salmos foram postos em versos e métrica, em todas as línguas onde o Calvinismo tinha influência. Na Alemanha, igualmente, à semelhança dos salmos métricos de Calvino, Lutero escreveu o “Castelo forte”, que é uma versão métrica do Salmo 46. Como Lutero, inúmeros autores produziram textos para serem cantados, baseados nas Escrituras e nas experiências da vida cristã.
Na Inglaterra, Isaac Watts (1674-1748) não era contra o uso dos Salmos, mas dizia que os Salmos deveriam ser “cristianizados” à luz do Novo Testamento. Ele foi um pastor não-conformista, que discordava do governo e dos costumes aceitos pela Igreja Inglêsa (Anglicana) e é considerado o Pai da Hinódia Cristã, por liderar um movimento a favor do uso de hinos de composição humana nos cultos.
Os Salmos Metrificados – João Calvino (1509-1564)
Calvino dizia que os salmos sempre foram usados pelo povo de Deus, e que só eles deveriam ser usados no culto. Segundo ele, os salmos podem nos ajudar a erguer os nossos corações a Deus e nos levam a maior zelo ao invocar e exaltar sua glória em louvor do seu nome. Em sua obra “As Institutas“ fica claro que Calvino tinha as orações e o canto colocados em um lugar de destaque no seu sistema teológico geral.
Os salmos na língua hebraica são poesias, e fazem o uso de paralelismos e acrósticos. Calvino achava que nós também devíamos cantá-los metrificados, como poesias, e com rima. Além do mais, isto facilitaria o aprendizado e a memorização.
a) Os Saltérios eram os hinários que continham todos os salmos da bíblia, metrificados, isto é, em forma poética, para serem cantados pelos Calvinistas. Marot e Beze fizeram a metrificação dos textos dos 150 Salmos para o Saltério de Genebra, publicado em Francês por Calvino em 1562.
Os salmos metrificados chegaram ao Brasil com os Holandeses e Franceses Calvinistas nos século 16. Eles os cantavam em suas próprias línguas.
A tradição Calvinista ainda hoje enfatiza o uso do cântico dos Salmos metrificados no culto.
b) Conselhos de Calvino
Os conselhos de Calvino para a música litúrgica parecem muito austeros para o dia de hoje. Entretanto é muito oportuno examinar seus conselhos, visto que a música de culto está se tornando entretenimento, baseada no populismo de nossa época, e sem dúvida precisamos voltar às raízes do movimento reformado.
Assim dizia Calvino:
“Devemos tomar todo o cuidado para não fazer da música um elemento de entretenimento; ao contrário, a música é para adoração do Criador e a edificação da igreja.”
Segundo ele, o cântico dos Salmos tem 3 propósitos:
1) Glorificar a Deus.
2) Edificar os membros da igreja.
3) Meditar e desenvolver as virtudes cristãs.
“O primeiro objetivo maior do canto congregacional não é a expressão da resposta de alguém à fé, e nem o compartilhar dos sentimentos de alguém, mas sim louvar a Deus pela sua misericórdia e graça.” “Na realidade”, escreveu Calvino, “está prescrito para nós uma regra infalível que nos guia com respeito à maneira correta de oferecer a Deus o sacrifício de louvor. (CO 31, 18). O foco do canto congregacional é Deus, e não o homem. Este propósito principal de cantar os salmos deve estar evidente também na maneira como eles são entoados. O peso da cultura contemporânea ou dos valores estéticos de qualquer geração não devem sobrecarregar o texto ou causar distração ao exaltar a Deus.”
Um segundo propósito para se cantar salmos no culto é a edificação dos crentes. Por esta razão Calvino enfatiza a importância do exercício dos salmos de maneira consciente no relacionamento com Deus. “Cantar salmos ajuda a tirarmos nossos pensamentos das coisas terrenas e nos voltarmos para as espirituais. Ao envolver as mentes e as bocas dos crentes, o canto congregacional chama a atenção para a Palavra de Deus. A Palavra age nos corações dos crentes pela combinação poderosa do texto com a música. Como o texto precisa ser facilmente entendido, não deve ser em Latim, mas na língua do povo. Uma tradução dos salmos hebraicos não desvaloriza as Escrituras; ao contrário, aumenta o significado do salmo para aqueles que o cantam.”
Meditar nos efeitos da graça de Deus é a terceira razão para se cantar os salmos. “Os salmos funcionam como uma ferramenta para encorajar e fortalecer os crentes em horas de dúvidas ou tristezas. Eles também chamam a atenção aos pecados de cada um, à expiação de Cristo, e à necessidade da obediência. Eles nos apontam para as qualidades da paciência, sabedoria e da equidade que marcam a vida regenerada do crente. Resumindo, cantar salmos tem uma influência positiva sobre o comportamento moral do crente.” Por esta razão Calvino afirma repetidamente que “a menos que a voz e o canto jorrem das profundezas do coração, não tem nenhum valor nem proveito.” (CO 1, 88). “O desejo de se apropriar da Palavra de Deus e permitir que ela afete a alma é um elemento importante para se cantar salmos.” No capitulo das “Institutas” (3.20.32) que fala do canto congregacional, Calvino rejeita “canções que foram compostas somente para a doçura e deleite dos ouvidos” como “impróprias para a majestade da igreja.” (CO 2, 659). Em outro lugar ele desencoraja “o uso de textos e melodias que tenham muitos ornamentos, porque elas distraem se desviam da majestade da igreja e do culto.” Ele escreve, “com relação à melodia, parece-me melhor que ela seja moderada conforme a maneira que temos adotado, mantendo a gravidade e a majestade conforme o assunto.” (CO 6, 171-172). Citando Agostinho, Calvino aconselha que “devemos ser muito cuidadosos para que nossos ouvidos não prestem mais atenção à melodia do que nossas mentes ao significado espiritual das palavras”. (CO 2, 659). Em outras palavras, “a música deve ser tão simples que evidencie o sentido das palavras.”
Na ótica de Calvino “o uso de acidentes cromáticos, variações rítmicas e outras compliacações musicais impedem o impacto do texto cantado”. (CO 31, 324). Ele não se opôs cantar a duas ou três vozes, mas achava que não era pratico para a congregação cantar em harmonia. Ele estava mais preocupado “com a harmonia do coração com Deus do que com a harmonia do som musical.” Ele achava que “cantar em uníssono aumenta o efeito do texto na mente e no coração e expressa a convicção de que todos os adoradores pertencem ao sacerdócio dos crentes.”
O coral alemão – MARTINHO LUTERO (1483-1546)
Lutero era músico e compositor, por isso contribuiu efetivamente para o desenvolvimento do coral alemão, que é um certo estilo de hino congregacional. Acredita-se que ele mesmo tenha composto cerca de 25 corais para o uso congregacional. O seu famoso coral Castelo forte é nosso Deus (Ein’ feste Burg ist unser Gott) é um exemplo típico do estilo do coral alemão. O texto desse coral é baseado no Salmo 46. Muitos outros compositores o ajudaram na produção de um dilúvio de corais (hinos) que hoje fazem parte dos hinários de todas as denominações, em todas as partes do mundo. Além de dar grande prioridade ao canto congregacional através desses corais (hinos), Lutero também apoiou o canto do coro e o uso de instrumentos no culto, mas em papel secundário.
O ritmo da música é o elemento que mais influencia a atmosfera e o ambiente do culto. O cântico desses corais alemães eram de ritmos majestosos e simples, e podiam ser cantados facilmente por pessoas leigas. Eles geralmente usam uma nota por sílaba. Lutero adaptou e alterou o ritmo de algumas baladas e melodias populares conhecidas da época, tornando-as mais reverentes. Associou-as à textos bíblicos e litúrgicos, para serem cantadas imediatamente por sua congregação. Esse processo usado na idade média era chamado de “contrafacta”, e era uma pratica comum dos compositores de música religiosa.
A partir do final do século 16, com o desenvolvimento da harmonia, a melodia tornou-se a voz mais importante. Foi possível então, a partir daí, acompanhar com instrumentos musicais o canto predominante, com acordes, dando apoio e facilitando assim à pratica do canto congregacional.
Na idade média havia muito analfabetismo e toda a liturgia do culto, inclusive os cânticos, eram exercidos somente pelo clérigos e na língua Latina. Lutero, que era um sacerdote e teólogo, conhecedor da historia da igreja, das liturgias e da música queria que TODOS e não somente os clérigos, participassem ativamente de todas as partes do culto e em suas próprias línguas nativas em vez do Latim, como era o costume na época.
Ele queria que a liturgia voltasse para as bases bíblicas do culto cristão dos primeiros séculos, e por isso fez diversas alterações nela, principalmente na música. Baseado no princípio do sacerdócio universal, onde cada crente, diretamente, pode e deve se dirigir pessoalmente a Deus, em suas orações, confissões e louvores, Lutero ampliou e deu prioridade à participação dos fieis na adoração, dando grande ênfase ao canto congregacional.
III. A Influência Anglicana Reformada
A Igreja Anglicana (chamada também de Episcopal, para diferenciá-la da Igreja da Inglaterra) baseia a sua fé cristã na Bíblia, nas tradições da Igreja Apostólica, na sucessão apostólica e nos escritos dos pais da Igreja. Anglicanos formam um dos ramos do Cristianismo Ocidental, mas são totalmente independentes da Santa Sé (Vaticano) desde o Acordo Religioso e político durante o reinado de Elizabeth I (1533 a 1603).
Os Anglicanos foram os últimos a aceitar o canto congregacional reavivado pela Reforma.
Essas reformas da Igreja da Inglaterra normalmente são atribuídas ao esforço do arcebispo de Canterbury, Thomas Cranmer, que permanecia entre as duas tradições emergentes, Luterana e Calvinista.
Ao fim do século 16, a manutenção de muitas formas litúrgicas tradicionais e do episcopado eram tidas como inaceitáveis e ultrapassadas por ingleses que promoviam os princípios Protestantes mais evoluídos da Reforma.
a) Os Salmos metrificados de Genebra são levados para a Inglaterra:
Em 1557 quando os refugiados ingleses que haviam fugido de Mary a Sanguinária voltaram de Genebra para a Inglaterra, trouxeram para o seu país os salmos metrificados e as influencias Calvinistas.
Na Inglaterra os salmos cantados em versos se popularizaram rapidamente.
A primeira edição do Saltério inglês de Genebra apareceu 1556, com um total de apenas 51 Salmos. Thomas Sternhold (1500-1549) e John Hopkins (faleceu em 1570) foram os que mais contribuíram para esta edição em inglês. Outros também contribuíram nesta e nas edições subsequentes, como Whittingham, John Pullain e William Kethe.
Em 1635 surgiu o Saltério Escocês, e outros saltérios e novas edições continuaram por centenas de anos.
Quando apareceu a Nova Versão do saltério pulicada por Brady and Tate em 1696, a versão antiga (Old Version) de Sternhold e Hopkins continuou a ser usada. Essa versão antiga foi trazida para a America do Norte e continuou a ser usada até 1828, duzentos e sessenta e seis anos depois, tendo mais de 600 edições.
O Salmos métricos no Brasil:
Os Salmos da tradição Anglicana são importantes para nós brasileiros, porque destas edições inglesas vieram os Salmos contidos no primeiro hinário brasileiro-português, o Salmos e Hinos, minucioso trabalho do Casal Kalley.
O casal Kalley, Dr. Roberto Kalley, sua segunda esposa, Sarah e João Gomes da Rocha, um filho adotivo, publicaram as primeiras quatro edições com música do primeiro e mais importante hinário brasileiro, o Salmos e Hinos.
Os Salmos métricos em português contidos no hinário Salmos e Hinos (SH), que supúnhamos ser metrificação original de Sarah Kalley, na realidade foram todos extraídos e traduzidos dos Saltérios da língua inglesa, possivelmente do Saltério Escocês, visto que o Dr. Robert Kalley era Escocês e tanto ele como sua esposa deviam estar bem familiarizados com estas versões dos salmos. Por sinal, o primeiro salmo traduzido e metrificado pelo Dr. Kalley para o português, foi o Salmo 100, quando ele ainda era missionário na Ilha da Madeira. Era cantado com a música OLD HUNDREDTH, com a qual muitas denominações calvinistas usam para cantar a Doxologia. Há duas versões em português desse Salmo no Hinário Cantai Todos os Povos CTP (30 a e 30 b), uma do Dr. Kalley e outra de sua esposa.
Esses salmos tinham sido metrificados na língua inglesa inicialmente por Sternhold e Hopkins, como foi dito acima. Sarah P. Kalley, apesar de ser estrangeira, fez um trabalho monumental em traduzi-los para o português, observando a métrica e a rima, publicando-os a seguir no Salmos e Hinos, estabelecendo com esse hinário as bases da hinódia portuguesa-brasileira de origem Calvinista.
Os Saltérios Anglo-genebrinos usaram muitas melodias de fontes inglesas, inclusive de baladas populares, que foram adotadas para serem cantadas com o texto dos Salmos. Isto foi feito para encorajar o povo a cantar cantos sacros em vez de textos de canções mundanas populares.
c) Os Hinos
A igreja Anglicana aceitava o cântico dos salmos, por serem de inspiração bíblica, mas rejeitava o cântico de hinos. Os hinos eram usados por aquelas denominações que discordavam da linha Anglicana (Metodistas, Batistas e Congregacionais) ou podiam ser cantados em casa, mas não nos cultos. Por isto eles eram evitados, e pela mesma razão, o cântico de salmos métricos tinha se popularizado e esteve presente desde o inicio da Reforma no culto Anglicano. Saltérios antigos e novos foram incluídos no Livro Comum de Oração da Igreja Anglicana.
Com o passar dos anos muitos autores de hinos sugiram na Inglaterra, entre os quais John Newton: Preciosa Graça (Amazing Grace); Augustus Toplady: Rocha Eterna (Rock of Ages); Bispo Reginald Heber: Santo, Santo (Holy Holy) Ó Linda Estrela (Brightest and Best) etc…
CONCLUSÃO:
Os Salmos e os hinos antigos não estão ultrapassados?
Jamais! Tantos os Salmos como os hinos do passado, pertencem a todas as gerações.
Eles nos pertencem. Eles formam um autêntico cânone hinológico semelhante à própria Bíblia, e possuem, de modo geral, um padrão de beleza e de reverência poética e artística inigualáveis. Eles cristalizaram os pensamentos humanos a respeito de Deus e dos deveres diários dos crentes e foram passados de geração a geração. Eles contêm os ideais comuns dos crentes que louvam a Deus por meio da música.
© 2017 de João Wilson Faustini – Usado com permissão
Texto magnífico. Histórico simplificado de 500 anos de cânticos congregacionais e suas origens proféticas ( Eternidade ); Literarias ( Biblia, Palavra de Deus, Salmos); origem congregacional ( denominações evangélicas )
Texto sublime . Histórico simplificado de 500 anos de cânticos congregacionais e suas origens proféticas ( Eternidade ); Literarias ( Biblia, Palavra de Deus, Salmos); origem congregacional ( denominações evangélicas )
Bravi! Faustini!
Deus vos abençoe!