Três Spirituals Afro-Americanos – Por Cyrene Paparotti

Deixa Meu Povo Ir! (Go Down, Moses)

Indubitavelmente o texto base deste Spiritual se encontra no livro de Êxodo 5, narrando a libertação do povo israelita cativo no Egito. O mais fantástico relato bíblico traz a identificação direta dos africanos escravizados, com o povo de Israel escravo. Eles se sentiam no mesmo patamar de servidão que o povo escolhido de Deus e encontravam conforto na esperança de serem um dia liberados. Já para a cristandade, Moisés vem a ser a própria representação de Cristo libertando o povo escravo do pecado, dando a salvação e levando em direção da Terra Prometida. A emoção presente na música lenta e melancólica revela a profunda tristeza de viver na escravidão e o legítimo anseio pela liberdade.

A canção se tornou uma forma para desafiar os senhores de escravos, mesmo que não conseguissem concretizar a fuga. Provavelmente era uma canção código das Ferrovias Subterrâneas da Virgínia, onde o personagem Moisés, intercedendo pelo povo, aos pés de Faráo, “deixa meu povo ir” significava o maquinista da ferrovia subterrânea que os libertaria da servidão (ver nota em o Trem do Evangelho). Foi muito cantada durante a guerra civil. A mensagem continua sendo a mesma: um sonho sobre a luta pela liberdade.

Este Spiritual foi publicado e veiculado em turnê pelos Jubilee Singers da Universidade Fisk (1872) contendo 24 estrofes. Segue o padrão responsivo, onde o solista canta a narração e a congregação responde “Deixa meu povo ir”. Porém, há um registro mais antigo, a canção teria sido cantada em uma reunião nos Contrabandos do Fort Monroe. Foi coletado pelo Rev. Lewis Lockwood. Visitando a fortaleza Monroe em 1861, ele ouviu diretamente dos escravizados fugitivos. Transcreveu e publicou no jornal semanal oficial da American Anti-Slavery Society entitulado “Oh! Let my people go”. Ficou mundialmente conhecida quando Louis Armstrong a gravou em 1958.

Cyrene Paparotti, 2023

O Trem do Evangelho (The Gospel Train)

À primeira vista trata-se de um canto inocente para crianças, onde há o convite para entrar no trem e aceitar o evangelho. Disse Jesus: Em verdade vos digo que, se não vos converterdes e não vos tornardes como crianças, de modo algum entrareis no reino dos céus. Mt. 18:3. Jesus é o maquinista, subindo os trilhos para o céu, onde há a passagem e embarque no trem da salvação! Esta é a mensagem intrínseca. Na realidade, a canção toda é codificada, usando a linguagem criptografada do Underground Railroad (Ferrovias subterrâneas)*. Muitas vezes foi entoada antes da fuga, avisavam que a hora H estava próxima. Portanto foi associada ao movimento abolicionista.

Esta canção espiritual e folclórica é baseada em repetições para imitar a marcha do trem. Ela reproduz o apito do trem, o ruido da máquina com muitas onomatopeias e acordes que objetivam simular os sons do trem.

Acredita-se que John Chamberlain, o ministro batista de New Hampshire tenha cantado essa canção em 26 de abril de 1863 durante cultos. Em 1871 esta canção foi interpretada pelo Fisk Jubilee Singeres, o grupo afro-americano de estudantes da Fisk University que cantava a cappella. A Fisk University foi a primeira faculdade livre para “homens de cor”, fundada em 1866 em Nashville, Tenessee, um ano após a proclamada a libertação dos escravos. A primeira publicação impressa data de 1872. Popularizaram esta canção em uma turnê de arrecadação de fundos para a Universidade, formalizando a ascensão do Spiritual à cultura americana, deixou de ser restrito às igrejas de “pessoas de cor” e passou para salas de concertos com brancos. O Dr. H.T. Burleigh publicou versões para solo e coro masculino em 1921 e coro misto em 1927, pela G. Ricordi & Co.. New York.

Cyrene Paparotti, 2023

Referências:

Carter, N.F., Rev. The Native Ministry of New Hampshire: The Harvesting of More Than Thirty-Three Years. Concord, NH: Rumford Printing Co. 1906.

https://www.youtube.com/watch?v=dYwKkNXQ3SM FISK JUBILEE SINGERS

https://www.youtube.com/watch?v=ylD4zvvN79Y FISK JUBILEE SINGER

Alguém à tua porta está (Somebody’s Knocing at Your Door)

Este Spiritual é fundamentado no versículo Eis que estou à porta e bato; se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa e cearei com ele, e ele, comigo. Ap. 3:20.

Como a maior parte dos Spirituals, a autoria é desconhecida. Trata-se de um apelo ao ouvinte para responder às batidas (na música temos a batida literal percussiva). Ela convida os ouvintes para abrirem as portas de seus corações e deixarem o Salvador entrar. Talvez tenha uma criptografia para indicações de fuga, porém, até aqui não encontrarmos referência.

A publicação original data de 1919 pela John Church Company, Theodor Presser, na Filadélfia. A coleção se chamava Negro Folk Songs (Canções Folclóricas Negras) , com 8 peças para voz solo, arranjadas por R. Nathaniel Dett. Ele é um autêntico fruto das Ferrovias Subterrâneas, pois seus ancestrais eram escravos foragidos do Sul dos EUA para o Canadá, onde ele nasceu.

R. Nathaniel Dett foi um notável compositor, maestro e educador musical afro-americano. O primeiro negro a ser diplomado no Oberlin College Conservatory, Ohio, em piano e composição (1901), tendo duas importantes contribuições para a música sacra afro-americana: Religous Folksongs of rhe Nero (1927) e The Dett Collection of Negro Spirituals (I- IV ) 1936. Seus estudos superiores incluem a Universidade de Havard e o Conservatório Americano em Fontainebleau (França) com Nadia Boulanger. Concluiu o mestrado em música na Eastman School of Music em Rochester, Nova York.

Cyrene Paparotti, 2023

Referências:

Brooks, Christopher. “R. Nathaniel Dett.” Grove Music Online. Oxford Music Online. Oxford University Press. Web. 6 July 2017.
Library of Congress https://www.loc.gov/item/ihas.200038840/ (visitado em 01/3/23)

Textos Cyrene Paparotti em “Três Spirituals Afro-Americanos” Publicação da Sociedade Evangélica de Música Sacra (SOEMUS) em 20 de maio de 2023

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