”Negro Spirituals” – Rolando de Nassau

(notas históricas)

“O africano, na alegria canta um hino; na tristeza murmura uma canção”

No final do mês de agosto de 1619, uma vintena de africanos desembarcou de uma fragata holandesa em Jamestown na Virginia, colônia inglesa na América do Norte.

Em 1698 a África foi aberta ao comércio livre de seus habitantes. Esses africanos foram escravizados, geração após geração. Os colonizadores ingleses declararam a hereditariedade da escravidão.

Nos séculos 17 e 18 na América e na Europa desembarcaram milhares de africanos. A Revolução Industrial (fins do século 18 e do século 19), paradoxalmente, fez o agravamento da escravatura.

A América do Norte, progressivamente, tornou-se uma sociedade escravagista.

Os africanos capturados e espalhados nas colônias inglesas compuseram, apesar de suas diversidades étnicas e diferenças rituais, sua música característica. Tinham tomado conhecimento das práticas religiosas dos brancos, mas os plantadores não julgavam os negros dignos de serem instruídos e professarem a doutrina cristã. A maior parte da população branca duvidava que os africanos pudessem ser considerados seres humanos; eles poderiam até desestabilizar a hierarquia racial e favorecer a desordem social.

Muitos dos Peregrinos, que desembarcaram do “Mayflower” em 1620, não frequentavam assiduamente os cultos e não viviam de acordo com as Escrituras.

John Winthrop (1588-1649), governador da colônia de Plymouth, apesar da crescente mentalidade escravagista, acreditava que os colonizadores eram uma espécie de missionários abençoados por Deus; eram Puritanos que esperavam criar, nas colônias, a igreja cristã verdadeira e perfeita, mas em suas cogitações não estava a questão da escravatura.

Os Peregrinos brancos viram a América, no início do século 17, como o novo Israel; os escravos africanos nela reconheceram os rios do Egito. O “spiritual” de 1861, “Go down, Moses”, celebra o Êxodo do povo hebreu.

Charles Colcolk Jones, em 1842, num manual de conduta para os fazendeiros, escreveu: “Creio firmemente na eficácia de uma instrução religiosa sadia, como meio de alcançar nossos objetivos: desviar as paixões humanas; tornar o escravo mais respeitoso dos interesses alheios; mais desejoso de obter o favor dos patrões; mais obediente à autoridade; mais paciente para suportar os preconceitos; e elevar o valor da vida humana”.

Os primeiros “negro spirituals”, vencida uma etapa da comunicação verbal entre os colonizadores americanos e os escravos africanos, nasceram da livre interpretação das Escrituras; os escravos conheceram, primeiramente, os salmos e os hinos.

No início do século 18, formaram-se na América os Presbiterianos, os Batistas e os Metodistas. Os irmãos Wesley escreveram hinos que se tornaram muito populares na comunidade negra.

Para os Puritanos, que tinham sido perseguidos na Inglaterra, Cristo tinha morrido para os brancos e os negros.

Esses Pioneiros procuraram conquistar a liberdade de pensamento e a afirmação de uma pureza moral.

Quando as colônias inglesas obtiveram sua independência, existiam cerca de 750 mil negros, principalmente no Sul. Surgiu, então, um movimento para criação de igrejas independentes para os negros. Em 1774, a primeira igreja cristã negra foi fundada na Carolina do Sul; em 1777, a primeira igreja batista, na Geórgia.

A partir de 1780, os negros participaram do Segundo Reavivamento Religioso. A relativa tolerância racial que acontecia nos acampamentos no Norte e no Centro da América não se reproduziu no Sul.

O Congresso dos EUA aprovou, em 1º. de janeiro de 1807, uma lei federal proibindo o comércio escravagista, observada apenas no Norte e no Centro da América.

A famosa canção negra “Swing low, sweet chariot” faz alusão à rede de rotas e esconderijos secretos para fuga de escravos, apelidada de “Underground Railroad” (ferrovia subterrânea), pela qual estima-se que, entre 1850 e 1860, fugiram mais de 100 mil escravos, em direção aos estados do Norte e ao Canadá. Outros “spirituals” referem-se às viagens, às fugas e às travessias de rios para libertação de negros.

A Guerra Civil (1861-1865) inspirou “Our God is marching on”. Pouco antes, foram fundadas universidades negras na Pensilvânia (presbiteriana) e no Ohio (metodista).

Os cantores da Fisk University (Nashville, Tennessee) eram alunos e professores que divulgavam os “negro spirituals” em concertos, usando a coleção “Slave Songs of the United States” (1867). Em 1873 viajaram para a Grã-Bretanha e cantaram perante a rainha Victoria.

Surgiram muitos outros grupos corais para executar o “spiritual” de estilo acadêmico.

Seguiu-se o trabalho de coleta e adaptação erudita dessa música folclórica de negros.

Harry Thacker Burleigh (1866-1949), filho de escravos, arranjou centenas de “spirituals”, que influenciaram Anton Dvorak na composição da sinfonia “Do Novo Mundo”.

No século 19, os europeus continuaram o tráfico negreiro, mas os franceses libertaram os escravos.

O Brasil, somente em 13 de maio de 1888 decretou a abolição da escravatura.

John Wesley Work II (1871-1925), John Wesley Work III (1901-1999) e James Weldon Johnson (1871-1938) deram importante contribuição à divulgação do “spiritual”, dentro e fora dos EUA.

Os mais divulgados “spirituals” foram: “Calvary”, “Deep River”, “Every Time I Feel de Spirit”, “Go Down, Moses”, “It’s Me, O, Lord”, “Joshua Fit de Battle ob Jerico”, “Nobody Knows de Trouble I See”, “Roll Jordan, Roll”, “Sometimes I Feel Like a Motherless Child”, “Steal Away to Jesus”, “Swing Low, Sweet Chariot”, “Were You There When They Crucified My Lord?” e “Zekiek Saw de Wheel”.

Nas manifestações políticas a favor dos direitos civis dos negros, o canto foi elemento de empoderamento espiritual ao serem cantados “Ain’t Gonna Let Nobody Turn Me Around”, “Down By The Riverside” e “Before I’d Be A Slave, I’ll Be Buried in My Grave”. Ainda hoje é cantado “We Shall Overcome”.

No século 20, a atividade musical e a condição social e política dos negros passaram por novas dificuldades (ver: OJB, 01 maio 1966 e 04 agosto 1991, e o artigo “A música cristã na África”, neste site hinológico)

Tony Morrison (1931-    ), escritora e professora americana, que escreveu sobre a escravatura negra durante a Guerra Civil, sintetizou assim o seu pensamento:  “A música nos ajudou a tolerar 300 anos de opressão”.

David Livingstone (1813-1873), médico-missionário e desbravador britânico, com a libertação de escravos pela França, em 1849, inaugurou uma série de viagens à África central e austral com propósito humanitário e evangelístico. Acompanhado por negros da tribo “Makalolo”, descobriu as famosas quedas-d’água (“Victoria Falls”, em homenagem à rainha da Grã-Bretanha), lutou, durante mais de 20 anos, para espalhar a fé cristã e combater a escravidão.

Foi imitado por Albert Schweitzer (1875-1965), também médico, teólogo, musicólogo, organista e escritor, depois de 1905 e durante 60 anos trabalhou na África equatorial, onde fundou um hospital em Lambaréné, no Gabão.

Talvez só quem possa falar em raízes africanas da música norte-americana sejam os músicos negros norte-americanos.

Em pleno século 21, por vezes a América mostra-se uma sociedade escravagista.

Bibliografia

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  • Mathews, Basil. Livingstone, o pioneiro. São Paulo: Imprensa Metodista, 1929. Este foi o segundo livro que lí, quando tinha nove anos de idade, presenteado por minha mãe.
  • Morrison, Tony. Beloved. Paris: Bourgois, 1989.
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  • Schweitzer, Albert. African Notebook. Holt.
  • Schweitzer, Albert. The Forest Hospital. Holt.
  • Southern, Eileen. Histoire de la musique noire américaine. Paris: Buchet-Chastel, 1976.

Rolando de Nassau

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